Crítica
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Sinopse
Uma gigantesca fábrica enfrenta a crise financeira e a quebra sucessiva das máquinas. Quando uma funcionária é contratada para investigar o problema, ela percebe ruídos estranhos vindos da estrutura do prédio. A tragédia envolvendo um trabalhador anuncia uma catástrofe de grandes proporções.
Crítica
O ambiente vazio das grandes fábricas e construções tem fascinado os cineastas brasileiros que encontram nestes espaços uma metáfora ideal para representar o apocalipse dos trabalhadores. Desviando o foco até então concentrado na classe média empobrecida, diretores como João Dumans e Affonso Uchôa (Arábia, 2017), Ricardo Alves Jr. (Vitória, 2020) e Gabriela Amaral Almeida (A Sombra do Pai, 2018) exploram o espaço de uma estrutura gigantesca, fria e desumanizada, onde corpo e máquina se fundem numa estrutura monstruosa e predatória. A distopia do ser humano robotizado é igualmente levada às últimas consequências por Francis Vogner dos Reis em A Máquina Infernal (2021). A empresa onde se situa a quase integralidade da narrativa carrega por si própria um aspecto assustador: os andares parecem esvaziados de objetos, de pessoas e de sentido – o que estão produzindo estes trabalhadores braçais? O escritório de Recursos Humanos é escuro demais, enquanto uma reunião com os funcionários, para discutir a crise na administração, ocorre sob uma pequena lâmpada direcional. Apesar do naturalismo dos espaços e das máquinas, o cineasta mergulha no realismo fantástico, tornando a locação inóspita e ameaçadora. Sabemos que algo horrível acontecerá ali dentro, algo confirmado pela tragédia desde a introdução. A fábrica se converte no ponto de encontro entre prisão, cativeiro, labirinto e abatedouro.
A elaboração estética constitui o aspecto mais sedutor do longa-metragem. A excelente direção de fotografia borra os limites entre realismo e fantasia, enquanto amplia ao limite do impossível a geografia local, apostando em fundos pretos infinitos e andares inacabáveis. Os personagens estão impecavelmente iluminados, não no sentido da idealização, e sim de serem desenhados e destacados em relação ao fundo, ou achatados às máquinas pesadas (vide a protagonista escutando os barulhos de um aparelho defeituoso). Os planos fixos e longos servem tanto a estabelecer um tempo de contemplação quanto a provocar estranhamento: quanto mais observamos determinada parte da usina, mais esperamos que algum perigo surja dali. Há tensão permanente ao longo da transformação dos protagonistas precarizados em máquinas descartáveis. Uma cena tão grotesca quanto bela condensa este princípio: um operário de corpo robusto e fala doce apresenta à nova colega sua mão metálica. Ao invés de uma prótese tradicional substituindo a mão perdida nas máquinas, ele possui um gancho robótico desenvolvido por si próprio. O objeto é apresentado com mais afeto e orgulho do que vergonha. Os protagonistas humanos jamais se reduzem à condição de vítimas piedosas: eles representam engrenagens de um sistema perverso. Fora do expediente, no entanto, há espaço para o gozo: um casal se beija pelos corredores, e outro faz sexo dentro do carro.
O filme cresce conforme introduz elementos fantásticos, sobretudo pelo som em off. No andar de cima, barulhos altos e estranhos remetem a algum monstro: os ruídos imitam a deglutição e outras funções orgânicas, combinadas com o prenúncio do colapso físico do galpão. Mesmo assim, ninguém investiga as origens do problema. Resistindo à crise (ou talvez ignorando-a), a fábrica produz, conforme atestam os planos externos da fumaça despejada sobre os céus, diante das árvores ao redor. Apesar das sucessivas quebras de máquinas, da mutilação de um empregado, e da estafa enlouquecedora de uma mulher “bruta”, o serviço continua. O diretor opera na chave da gradação, um mecanismo apropriado para o suspense sobrenatural. O medo se intensifica, assim como os conflitos envolvendo meia dúzia de personagens principais, até a inevitável explosão – ilustrada, neste caso, pela imersão total no cinema de horror. Os aspectos de monstruosidade e zumbificação refletem a exploração da classe trabalhadora, numa mistura de possessão e contaminação. O autor assume a artificialidade das lentes de contato brancas e das sobreposições fantasmáticas substituindo o mar de efeitos visuais – este é um projeto onde o dispositivo se revela com orgulho.
Em sua complexa alegoria, A Máquina Infernal possui o mérito de enxergar o corpo enquanto campo de batalha privilegiado na política contemporânea. Felizmente, permite inúmeras leituras, e ao final, desperta mais questionamentos do que oferece esclarecimentos. A presença equilibrada de homens e mulheres e a alusão a outras orientações além da heterossexualidade conectam a fábula ao universo contemporâneo, reforçado pelo consumismo (o desejo de comprar um bom telefone celular) e pela retirada progressiva de leis trabalhistas. Enquanto robotiza uma mulher de aparência hipnotizada, o filme humaniza a máquina que sangra, ou transborda alguma secreção. Seria fácil explorar estes elementos numa chave espetacularizada, porém Francis Vogner dos Reis mantém uma elegância perturbadora diante do grotesco, enquanto a equipe de fotografia navega em composições que remetem ao cinema de Pedro Costa e Aki Kaurismaki. O cineasta jamais se torna refém da vontade de chocar ou agradar. Pelo contrário, sustenta a ambiguidade de sua premissa do início ao fim, apostando na inteligência do espectador em interpretar sons e reviravoltas. Ao invés de colocar na boca dos atores alguma fala sobre o perigo de suas funções, retrata o sistema com uma placidez que sugere certa normalidade. O fato de não observar este mecanismo com espanto constitui o elemento mais espantoso de todos.
Filme visto online no Festival Internacional de Locarno, em agosto de 2021.
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