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Crítica


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Sinopse

Charlie não sabe se um dia voltará a ser o esportista que era. Depois de um incidente que mudou tudo, ele decide visitar seu primo no Québec. Lá, começa a se envolver com uma jovem trabalhadora da marina local.

Crítica

Existe algo muito curioso nos heróis de filmes independentes como A Marina (2020). Charlie (Rémi Goulet), ídolo de wakeboard na cidade canadense onde mora, sofre um acidente e fica impossibilitado de competir até a recuperação completa. Isso lhe fornece razões suficientes, segundo o roteiro, para ser desagradável com todos ao redor: o jovem manifesta atitudes grosseiras contra Juliette (Rose-Marie Perreault), garota que se interessa por ele; grita contra um adversário do esporte, ridiculariza as atitudes do primo, responde de modo rude aos desconhecidos e colegas de trabalho. Os diretores e roteiristas Étienne Galloy e Christophe Levac acreditam que o herói possua motivos de sobra para mandar o mundo às favas, afinal, atravessa um momento turbulento. Entretanto, o primo, a adolescente oferecendo seu amor, a amiga sexualizada e uma mulher idosa pensam apenas em abraçar Charlie e fazer o possível para colocá-lo de volta nos trilhos o quanto antes. Em sua recuperação garantida e sem dores, ele aparenta condensar os problemas do mundo, mas as pessoas ao redor não possuem problema algum. Por isso, dedicam suas vidas e suas existências narrativas à generosidade em relação ao atleta convalescente. Manifesta-se uma piedade absoluta com o adolescente, porém a boa vontade não se estende às pessoas ao redor.

Outros filmes adolescentes, sobretudo aqueles girando em torno de doenças terminais (A Culpa É das Estrelas, 2014, A Cinco Passos de Você, 2019) adotam este princípio: heróis brancos, de classe média e apaixonados possuem a licença para descontar suas dores, enquanto os coadjuvantes (onde se incluem diversidades raciais e LGBT) servem para dar a réplica a encorajá-los de volta. A vida amorosa ou familiar de nenhum outro personagem interessará à narrativa, muito menos a Charlie (o primo comenta uma vida amorosa invisível, a amiga engraçada atravessa uma ruptura ignorada pelos demais). O universo dramático é concebido para o protagonista, e pelo protagonista. Por isso, transparece uma artificialidade incômoda: Juliette oferece apenas sorrisos ao jovem pouco amigável, assim que o encontra. Encontram-lhe um emprego do dia para a noite, recebem-no em casa de braços abertos, o médico liga unicamente com boas notícias. O amplo otimismo soa inverossímil: em alguma situação realista, o dilema do garoto envolveria dúvidas sobre o futuro, problemas afetivos, financeiros etc. Neste universo-bolha, começa-se do fundo do poço para a que a única perspectiva seja a melhora. Charlie terá recaídas, porém saberá se reerguer a tempo. Ainda de acordo com os lugares comuns do subgênero “filme teen sobre doenças”, o final resolve magicamente todas as pendências.

No papel principal, Rémi Goulet dificulta a tarefa de identificação com o protagonista. Transferindo para as décadas passadas uma apatia tipicamente contemporânea, ele se desloca através dos planos com o rosto apático, a expressão constante de desgosto, a postura corporal fatalista. Charlie transmite menos a tristeza ou determinação de retornar ao esporte do que a aparência permanente de insatisfação, tornando menos compreensível a benevolência dos amigos e familiares. Possivelmente instruído pelos diretores a adotar tal postura, o intérprete se assemelha a Casey Affleck em início de carreira, quando a composição despojada se traduzia em indiferença. Felizmente, Perreault desempenha um contraponto interessante em termo de energia e presença física, ainda que a personagem possua um desenvolvimento ínfimo. As figuras que orbitam em torno do esportista possuem funções predeterminadas, ao invés de personalidades distintas: trata-se do interesse amoroso, do melhor amigo engraçado (o alívio cômico), o adversário violento (provocando-o a sair de seu torpor) etc. Em busca de um registro despretensioso, os cineastas se apoiam nas ferramentas previsíveis do filme de férias, o “filme de verão” e o feel good movie onde cada pequena tristeza precisa ser equilibrada com uma piada em seguida – os diálogos, neste caso, beiram o constrangimento.

O imperativo sorridente se transfere para a estética em geral. As sequências de wakeboard, onde convenientemente não se enxerga a astúcia do protagonista, reproduzem o estilo dos videoclipes da MTV, sem subversões de linguagem. A metáfora para indicar o “enterro” da carreira esportiva de Charlie é tão literal que provoca risos involuntários, ao invés de contribuir ao humor agridoce. Sobretudo, uma longa cena noturna entre o herói e Juliette condensa as escolhas técnicas questionáveis. Num plano abertíssimo e distante, os diretores retratam a conversa existencialista da dupla em um parque deserto. Infelizmente, nada funciona nesta composição: a luz escuríssima sequer destaca os personagens do cenário, a suposta profundidade das falas se confunde com frases de efeitos, as trocas entre os personagens não provocam dinamismo, e o lento zoom in, depois de extensos minutos de cena, se revela incapaz de transformar o conflito ou sugerir algo novo na proximidade entre os jovens. Sequências do tipo saltam aos olhos pela inexperiência da direção e a dificuldade de desenvolver a psicologia dos personagens para além de uma estética decorativa.

De resto, Galloy e Levac investem nas tradicionais músicas pop de transição entre cenas, nos créditos engraçadinhos com a equipe, numa inexplicável cena pós-créditos e mesmo na desgastada panorâmica rumo ao céu azulado para sugerir um futuro promissor. Há uma razão pela qual estes lugares comuns foram criados, valorizados, e também esgotados ao longo do tempo. Eles transmitem um significado evidente, porém desprovido de ambição discursiva ou autoral. A Marina se assemelha a dezenas de romances dramáticos adolescentes vistos na televisão nas últimas décadas, caso em que a produção canadense sai em desvantagem – afinal, tanto a sociedade quanto o audiovisual se transformaram desde então. Este cinema contente em reproduzir ícones do passado se mostra decepcionante para uma equipe tão jovem, com acesso a diferentes formas de linguagem. Pelo nível da produção, os criadores teriam a possibilidade de alçar voos muito mais altos se quisessem (mesmo dentro do gênero teen, da comédia romântica e do feel good movie). Fórmulas existem para serem exploradas em suas fronteiras, recombinadas e renovadas, não reproduzidas de maneira servil. É triste descobrir um novo filme, de novos autores, com aparência tão velha.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em novembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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