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Sinopse

Uma médium famosa no norte da Tailândia percebe os comportamentos cada vez mais sinistros de sua sobrinha. Tudo indica que ela esteja possuída por uma entidade maligna. Mas, nada preparava a médium para a realidade.

Crítica

Uma das marcas do cinema moderno é a maneira (heterogênea) como os filmes buscam dialogar com a realidade. Tendo isso em vista, as fronteiras entre ficção e documentário são gradativamente borradas. Decorrência dessa área cinzenta, o filão denominado mockumentary (falso documentário) é frequentemente utilizado para escancarar a ficção em meio a premissas estapafúrdias demais para caberem no real. Por exemplo, O Que Fazemos nas Sombras (2014) utiliza a linguagem documental em prol de uma sátira sobre vampiros e lobisomens. Assim, o longa exibe um curto-circuito entre o realismo desenhado pela abordagem e a irrealidade das circunstâncias e dos personagens. Já no terror, a estratégia mais constante para estabelecer as ambiguidades trocadas entre ficção/realidade é o found footage, ou seja, a construção narrativa com base no que seriam “imagens encontradas” de algo supostamente acontecido – seu maior expoente dos últimos tempos é A Bruxa de Blair (1999). Já o tailandês A Médium recorre às lógicas do falso documentário para, ao sinalizar a realidade, incutir no espectador cada vez mais bombardeado por imagens em movimento uma sensação extra de apreensão. A trama mostra uma equipe documentando a xamã que se diz possuída pela divindade herdada através das gerações pelas mulheres de sua família. Mas, algo acontece e os rumos da rota são recalculados.

A Médium começa enfatizando a mitologia, seja por meio dos depoimentos de Nim (Sawanee Utoomma) ou das imagens cruas de rituais (oferendas, orações, etc.). A protagonista conta a sua história de modo bastante direto, assim desenrolando o novelo do seu clã destinado ao xamanismo. Com esses testemunhos, o cineasta Banjong Pisanthanakun fornece ao espectador as informações sobre um universo bastante particular e, ao mesmo tempo, acerca de como cada peça se encaixa nele. Nim foi obrigada a aceitar um destino não cumprido pela irmã primogênita, mas atualmente parece viver em acordo com o fato de ser a hospedeira da entidade reverenciada na região. Portanto, num primeiro momento, a estratégia do falso documentário serve mais como uma tática para organizar as informações de contexto do que necessariamente como um suporte de aproximação do enredo macabro com a nossa realidade. Mas, felizmente, esse "didatismo" não compromete a instauração de uma atmosfera de apreensão que vai tomando conta do filme. Diferentemente de boa parte dos seus contemporâneos, o realizador não investe demasiadamente em expedientes como o jump scare – mudança abrupta para ocasionar impactos que levem ao susto –, a isso preferindo o desenho da situação marcada pela escalada rumo ao desconhecido. Alguém morre e uma reunião familiar engatilha o caos.

O contato de Nim com os irmãos, cunhados e afins sublinha o extraordinário. Ela encara uma entidade maligna que está se apoderando de sua sobrinha Mink (Narilya Gulmongkolpech). A Médium trabalha muito bem a dúvida sobre a natureza dessa força que se apossa da menina e altera drasticamente o seu comportamento. Será que se trata da entidade negada pela mãe e aceita pela tia, agora à procura da nova hospedeira? Será que todos estão diante de uma ameaça desconhecida? Banjong Pisanthanakun é bem-sucedido ao cozinhar uma ignorância generalizada, isso enquanto torna ainda mais rico o panorama no qual colidem os elementos ordinários e extraordinários. O filme é sustentado sobre dois pilares: a herança (representada pelo destino) e a verdade (por conseguinte, a mentira). A primeira é composta de desavenças, causos de antigamente, mágoas e componentes menos enfatizados – como Noi (Sirani Yankittikan) vendendo ilegalmente carne de cachorro e convertida ao cristianismo ao negar a entidade hereditária. A segunda tem a ver com segredos ocultados por (e entre) parentes e algo inesperado que desestabiliza ainda mais o filme próximo ao fim. Portanto, os personagens precisam lutar não somente contra as sinas impostas por algo que está escrito, mas também contra as fraudes. E há o próprio cinema, escancarado como a moldura disso tudo.

Nos seus pouco mais de 120 minutos, A Médium mantém a inquietação, sobretudo por mesclar a preparação dos cenários (reais, psicológicos, emocionais, etc.) com as demonstrações viscerais de brutalidade. Há cenas perturbadoras, como o sequestro do bebê ou o homem chocando a cabeça contra a parede, e instantes carregados numa atmosfera densa de horror, como o ritual pensado para expurgar os demônios da hospedeira que está definhando a olhos vistos. No entanto, é questionável se a opção pelo falso documentário se torna fundamental para esse resultado geralmente angustiante. Fora os efeitos gerados pelas imagens trêmulas e pelos eventuais ataques diretos às câmeras, o fato de a equipe registrar aquilo não é tão determinante, ou seja, não chega a compor uma camada narrativa tão significativa – exceção feita ao breve e único instante em que o espírito reivindica o poder sobre o dispositivo de filmagem. Plano-Sequência dos Mortos (2017), por exemplo, é mais bem-sucedido como mockumentary de horror, já que nele a metalinguagem é essencial. Aqui, essa estrutura é mais conveniente para situar informações e menos enquanto produtora de angústia por uma proximidade com a realidade. Mas, isso não diminui as qualidades desse filme que atrela a agressividade dos espíritos obsessores à ancestralidade. Nele, a família é observada como uma estrutura naturalmente ambígua: de um lado, disposta a proteger os seus componentes; de outro, espaço onde a fome dos fantasmas é saciada.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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