Crítica
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Sinopse
Crítica
A primeira coisa que chama a atenção em A Melhor Juventude é a sua insólita duração de um pouco mais de seis horas. Um verdadeiro mastodonte, uma anomalia em meio ao cenário comercial do cinema repleto de produções rápidas (às vezes rasteiras) e de diminuta existência. O cineasta Marco Tullio Giordana analisa a Itália do fim dos anos 60 ao começo dos 2000 a partir da família Carati, com o foco nos irmãos Matteo (Alessio Boni) e Nicola (Luigi Lo Cascio). Há a observação das inquietações de juventudes efervescentes e o esquadrinhar, não menos interessado, de aventuras intempestivas e frustrações responsáveis por alterar futuros provavelmente brilhantes. Um é afeito às artes, frequentemente buscando nos livros o substrato nutritivo de sua alma. O outro segue sempre em frente, não esmorecendo sequer diante da inusitada desistência do companheiro de uma jornada que, então, é inviabilizada como um programa a dois. Esse elo é tão preciosamente desenhado como os demais nessa obra-prima que fala direta e prontamente ao coração.
O que sustenta o interesse em A Melhor Juventude é a profundidade e a densidade dos personagens. Ao largo das transformações italianas, de mudanças de cenários que apresentam as idiossincrasias de cidades/regiões como a charmosamente decadente Roma, a operária Turim e a mítica/misteriosa Sicília, pulsam os desejos e as impossibilidades. O afeto constantemente fundamenta (como coluna) essa narrativa dotada de raro poder de enraizamento na percepção do espectador. Exatamente por se tratar de um filme de duração hiperbólica, Marco Tullio Giordana capricha nos detalhes, evitando passar por qualquer circunstância sem escrutinar as suas complexidades, fazendo uma emulação eminente da vida e de suas vicissitudes. Gradativamente, Nicola vai se impondo como o pilar rijo desse enredo que de forma nenhuma deixa coprotagonistas ou coadjuvantes à mercê da mera ilustração. Os sonhos compartilhados dos manos são reconfigurados no contato com Giorgia (Jasmine Trinca), paciente psiquiátrica que ambos intentam salvar da política estatal do eletrochoque.
As interações de Nicola e Matteo com a jovem desprotegida, de olhar perdido por conta da moléstia que lhe turva a consciência – mas sem embota-la de todo –, consolidam a personalidade desses rapazes que de modo crescente são levados por conjunturas alheias às suas vontades, testemunhando, com apenas certo grau de autonomia, o mundo os dragando impiedosamente a determinados lugares literais e/ou metafóricos. A Melhor Juventude se agiganta até tornar-se completamente magnético justamente por essa capacidade de projetar os desvãos e as imprevisibilidades que alteram caminhos, mesmo os aparentemente galvanizados na resolução de sujeitos dispostos a não repetir vícios paternos. O realizador não resvala no maniqueísmo, inclusive quando os irmãos aparecem lotados em lados antagônicos de uma luta social. Matteo, depois do tempo de exército que sobreveio à sua desilusão existencial, assume a farda de policial e coíbe manifestações estudantis à força. Nicola demonstra engajamento com as demandas do povo, exibindo a sua brava e contumaz empatia.
A Melhor Juventude utiliza de forma milimétrica o tempo à disposição para construir as teias afetivas que interligam pessoas e casos com substância. Matteo se debate em virtude da dificuldade para encontrar-se, mais errando que acertando em função desse estrépito interno que não lhe deixa colocar ordem num caos singular. Nicola encara decepções amorosas, é instado a assumir uma paternidade quase em tempo integral, isso enquanto se decide pela psiquiatria e, por conseguinte, abraça a luta antimanicomial. O fato dele não acreditar na internação de pessoas em hospícios, nesses locais que tratam doenças como desculpa para punições físicas, é imprescindível à compreensão de sua personalidade, assim como entender a fúria do irmão é vital à adesão à sua completude beirando o ontológico. A beleza desse filme reside, em boa parte, nesse carinho à disposição das pessoas, ao praticamente inexistente ímpeto de julgamentos ou algo equivalente. O envelhecimento, as transições e senões impostos pelo decurso da vida são aqui dispostos com sensibilidade ímpar.
Ao mesmo tempo mergulho vertiginoso na família Carati e estudo das transformações pelas quais a Itália passou em aproximadamente quarenta anos, A Melhor Juventude transcorre sedimentando as vivências dos personagens, mostrando altos e baixos como processos naturais, apelando pontual e habilidosamente à emoção e, com semelhante precisão, permitindo que os silêncios retumbem a bagagem da gente investigada de perto. A amizade entre Nicola, Carlo (Fabrizio Gifuni) e Luigino (Paolo Bonanni) resiste a tudo. O médico, o economista renomado e o pedreiro que vira dono de empreiteira parecem os meninos de sempre nos encontros cada vez mais esparsos por força dos compromissos de adultos. As profissões e atividades dos personagens, tal como o ativismo de Giulia (Sonia Bergamasco), que descamba à luta armada, permitem ao conjunto passar por núcleos específicos da Itália intrincada e cheia de particularidades. A argamassa dessa leitura terna e consistente é o elemento humano, contemplado pelo ótimo elenco e pela direção não menos excepcional.
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