Crítica
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Sinopse
Um veterano jornalista que atuou fortemente no registro da ditadura chilena é casado com uma atriz há mais de 20 anos. Diagnosticado com Alzheimer, ele precisará da ajuda dela para enfrentar a sua derrocada mental e física.
Crítica
“Sem memória não há identidade”. A frase contundente do jornalista chileno Augusto Góngora é apresentada por meio do material de arquivo que ajuda a construir o tecido narrativo de A Memória Infinita. Na ocasião, ele se referia à necessidade de nunca deixar cair no esquecimento os crimes cometidos pelos militares que tomaram o seu país de assalto em 1973 – num roteiro semelhante ao de outras ditaduras civis-militares latino-americanas entre os anos 1960 e 1980. Um povo sem memória é propenso à repetição de velhos erros, fica à mercê de discursos torpes, vira um grupo sem parâmetros de identidade aos quais se referir. A ironia melancólica do filme dirigido por Maite Alberti é que esse mesmo personagem, tão importante no passado para furar as repressões governamentais ao trabalho corajoso da imprensa combativa, está perdendo suas lembranças gradativamente por causa do Alzheimer, essa doença tão cruel. Portanto, trazendo a citação que abre este texto a um nível pessoal, Góngora está perdendo traços fundamentais da identidade atrelada às suas inúmeras recordações. Aos poucos, ele vai deixando de identificar as pessoas, fica confuso em contato com a realidade e tem dificuldades motoras que o impedem de rotinas simples. Esse processo é capturado por um olhar não intrusivo e sensível que preserva a dignidade dos personagens. Sim, pois a coprotagonista é Paulina Urrutia, esposa de Góngora.
Maite Alberti não fica tão presa a uma progressão cronológica retilínea. Tanto que abre A Memória Infinita com um despertar matutino em que Paulina precisa informar a Góngora sobre quem ela é, pois o avanço da doença está comprometendo sensivelmente esse ato que nos parece quase automático de identificar uma pessoa conhecida/querida. Aliás, a primeira metade do documentário é um retrato ao mesmo tempo angustiante e transbordante de ternura sobre um companheirismo notável. Paulina e Góngora conversam abertamente sobre a doença, sobretudo enquanto ele ainda tem consciência a respeito de sua condição degenerativa. Há instantes dilacerantes, como quando esse ex-jornalista se lembra do amigo degolado pela ditadura, memória que traz consigo uma dor persistente e transbordante em lágrimas. Enquanto Góngora se lembrar desse sujeito, de certa forma ele não terá desaparecido, ou seja, a memória também é uma forma de combater aquilo que a ditadura extirpou da sociedade chilena. O casal protagoniza recortes de cotidiano em que o enfermo demonstra uma resignação calma diante da própria situação, enquanto a esposa que precisa se transformar em cuidadora oferece toda a atenção e o amor que lhe cabem para diminuir a dor do outro. Os lampejos de clareza que escapam à onipotência do Alzheimer permitem momentos lindos como o passeio de bicicleta.
A Memória Infinita é repleto de comoventes declarações de amor, entre outros indícios bonitos da solidez de uma parceria percebida por meio dos olhares que Paulina e Góngora trocam. São especialmente tocantes as cenas em que ela está no palco, fingindo ser outra pessoa (o que poderia causar uma enorme confusão mental para ele), sendo contemplada com uma atenção ao mesmo tempo admirada e apaixonada. Enquanto vai desenhando esse amor calmamente, focada no cotidiano de seus personagens e na ciência de que tudo pode piorar num curto espaço de tempo pelo avanço da doença, a diretora resgata um pouco da história chilena que Góngora ajudou a tornar visível. Ela utiliza muito bem o material de arquivo, geralmente dando conta de correlacionar, do ponto de vista da importância da memória, o esquecimento do protagonista e como é essencial nunca deixar certos eventos históricos serem obscurecidos ao ponto de sumir. Em instantes excepcionais, Paulina e Góngora ganham a companhia de outras pessoas em cena, mas geralmente são apenas eles que a câmera captura – o que indica a união entre os dois e, ao mesmo tempo, como passam sozinhos por uma tormenta sem tanto suporte. É previsível que o desenvolvimento do filme acompanhe as pioras no estado de saúde de Góngora, como de fato acontece em trechos marcados pelas sensações de impotência e desespero expressadas por ela.
O aspecto romântico-trágico é o ponto alto de A Memória Infinita, tanto que a primeira metade do documentário é mais emotiva, até mesmo por conter leves traços de esperança. Na medida em que Góngora é tomado por uma angústia lancinante ao perder os seus referenciais de realidade, às vezes chegando a acreditar que é mantido em cárcere privado, o filme assume uma postura pesarosa, embora nunca perca de vista o amor celebrado como demonstração valente de persistência e bem-querer. Curiosamente, parte dessa derrocada acontece durante a crise pandêmica da COVID-19, o que obriga os personagens a ainda mais isolamento e ao manuseio do equipamento cinematográfico. Paulina sofre para ajustar a câmera em vários instantes, nem sempre conseguindo acertar o foco, assim recortando seu cotidiano com imagens opacas de pouco contraste. Isso pode ser encarado metaforicamente como um registro dessas memórias que vão sendo turvadas pela terrível doença, primeiro, deixando borrões nos lugares das certezas, segundo, praticamente inviabilizando o discernimento. Maite Alberti opta por uma linguagem simples, direta e sem rodeios, provavelmente para não perder de vista o aspecto humano e comovente dessa história. Também é importante frisar que em nenhum momento o filme aborda essa jornada dramática como um espetáculo, mantendo sempre o tom baixo e a atenção nos gestos e naquilo que essa batalha pode simbolizar num sentido pessoal e coletivo.
Filme visto durante a 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2023)
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