Crítica
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Sinopse
Os namorados Suzane von Richthofen e Daniel Cravinhos assassinaram brutalmente os pais dela. O crime chocou o Brasil e foi sendo ressignificado à medida que as versões de ambos muitas vezes se mostravam conflituosas. Pela perspectiva de Daniel, ele foi um jovem honrado e trabalhador, manipulado por uma garota perversa. Esta é a versão dele.
Crítica
Em primeiro lugar, cabe uma precisão: A Menina que Matou os Pais (2021) não é nem tão complexo quanto sua divisão em duas partes poderia sugerir, nem tão catastrófico quanto parte do público esperaria. Por se tratar de um caso policial famoso, que dominou as manchetes e se converteu em parte da cultura pop-trash nacional ao longo dos anos, aguardava-se um filme ridículo, mal feito, surfando na popularidade de uma história que, dezenove anos depois, não apresentou qualquer reviravolta que justificasse uma releitura. Portanto, a aparência de oportunismo (ganhar dinheiro e produzir entretenimento a partir da miséria alheia) e a presença de uma celebridade da televisão, recém-saída de um reality show (embora as filmagens tenham ocorrido antes do programa) nos preparavam para um caso de vergonha alheia, repleto de atuações amadoras e uma sensibilidade digna dos programas de TV policialescos de canais conservadores. Ora, embora Carla Diaz e Leonardo Bittencourt estejam longe de uma grande atuação - eles são devorados em cena por Allan Souza Lima e Augusto Madeira -, tampouco oferecem ao espectador sedento por memes um novo Cinderela Baiana (1998). Quanto ao conteúdo sensacionalista, os autores acreditam se esquivar deste problema através de uma abordagem muito particular.
No caso, os roteiristas apostam na representação das falas em paralelo: uma narrando o assassinato dos pais von Richthofen pela perspectiva de Suzane, e a outra, pelo olhar de Daniel Cravinhos. O letreiro alerta: “Esta é uma obra artística de conteúdo biográfico, baseada em fatos reais (sic), que teve como principal fonte de informação os autos judiciais do caso”. Ao final, novos letreiros indicam as penas de cada um, da maneira mais objetiva possível. Com esta postura, o diretor Maurício Eça e os roteiristas Ilana Casoy e Raphael Montes buscam a aparência de imparcialidade - as versões de cada um estariam expostas ao espectador, cabendo a ele tirar as conclusões desejadas. De fato, terminado o monólogo ao juiz, o filme se interrompe abruptamente, sem conclusão nem reflexão posterior. Um aviso final alerta sobre a existência da segunda parte, antes de revelar algumas cenas, em modo teaser, como nos programas de televisão interativos de décadas atrás ("E o final, você decide!”). Ora, a iniciativa fracassa por diversos motivos. O primeiro deles diz respeito à ausência de posicionamento dos autores: os longas-metragens funcionam como tese e antítese, porém evitam a síntese capaz de confrontá-las. Seria fundamental propor algum tipo de debate sobre a violência, a ganância, o jogo de manipulação, contextualizando a fábula trágica que opõe classes sociais distintas. Entretanto, o roteiro prefere se limitar à ilustração dos autos, em flashback.
Em segundo lugar, este filme de tribunal jamais funciona enquanto tal. Não há hesitações, pausas, divergências, intervenções dos juízes, escândalos ou temores na plateia, nem reações inesperadas dos jurados. Em outras palavras, inexiste tensão: cada protagonista oferece uma narrativa linear e descritiva ao juiz (e ao espectador) com um linguajar cuidadosamente elaborado por suas equipes jurídicas. Os verdadeiros heróis destas tramas estão ausentes: os advogados. Afinal, não temos acesso ao que Suzane von Richthofen e Daniel Cravinhos pensam, apenas à formulação elaborada pelos conselheiros e apresentada à justiça. Eça conquista a façanha de retratar o direito penal sem advogados, nem o processo da construção de uma defesa. Há disparidades óbvias nas falas, que seriam verificadas com facilidade - uma delas aponta a viagem de Suzane com os pais para a Europa, ao passo que a outra defende que a garota ficou sozinha em casa -, no entanto, o drama se priva da possibilidade (e responsabilidade ética) de confrontá-las, expondo suas contradições. Trata-se de uma obra de investigação sem investigação, uma espécie de crime sem crime, pois condicionadas a discursos vitimizantes e isentos de culpa. Nas passagens menos verossímeis dos discursos (os pais deixando uma adolescente e uma criança sozinhos em casa durante um mês, sem supervisão; o envolvimento dos pais Cravinhos no assassinato), o caso expõe brechas para contestação que são ignoradas pelo cineasta.
Ao invés de imparcialidade, o resultado transmite passividade e conformismo. Seria incorreto falar em metades de uma história, pois duas metades formam uma unidade completa, e após três horas de duração (com as obras juntas), ainda se desconhece os raciocínios de Suzane e Daniel fora do tribunal e sobretudo, aquele de Eça, Casoy e Montes. A postura dos autores se limita à constatação do óbvio: eles mataram, e atribuem um ao outro a autoria das mortes. Essas informações, conhecidas anteriormente, em nada esclarecem as circunstâncias do episódio. Aquilo que o cinema poderia elaborar - sugestões, digressões, metáforas através do uso da linguagem - está convenientemente ausente. Certo, as versões apresentam mudanças no tom e na perspectiva, porém são filmadas de modo semelhante, em ângulos idênticos, enquanto a montagem se contenta em repetir sequências nos dois filmes. O espectador mergulha na cansativa experiência de iniciar a segunda sessão (pouco importa a ordem de exibição) encontrando imagens recicladas. Num instante, Daniel entra no quarto pós-banho, enrolado numa toalha branca. Na segunda história, a toalha é preta. A noção de “versões diferentes” beira o humor involuntário neste caso: teria sido mais interessante construir o ponto de vista de Suzane e de Daniel pelos olhares subjetivos, a variação dos enquadramentos, da profundidade de campo, da duração dos planos, da trilha sonora.
Esteticamente, as obras se equivalem em qualidade e se anulam em mensagem. A Menina que Matou os Pais e O Menino que Matou meus Pais (2021), do qual é indissociável, soam como episódios de uma série ampla, na qual os capítulos seguintes mostrariam a repercussão do caso, o impacto da condenação para Suzane e Daniel, a reação detalhada dos pais dos garotos, o papel da mídia, a condenação prévia do público sedento por sangue. Passados dois longas-metragens, resta a triste constatação que os criadores não têm nada a dizer sobre o caso no qual se baseiam para criar um produto de entretenimento. Ao invés de responderem qual deles é o verdadeiro responsável - questão infrutífera e retórica -, caberia analisar as consequências desta história, sua inserção dentro da sociedade, seu peso simbólico, e sobretudo a complexa psicologia de dois jovens envolvidos numa morte cruel. O público encerra a experiência sem acesso a qualquer uma destas reflexões. Se ao menos Suzane conversasse a respeito com uma amiga, fora do tribunal, ou Daniel se expressasse ao irmão, longe dos holofotes, talvez o projeto revelasse o mínimo de coragem e criatividade para oferecer uma perspectiva pessoal aos fatos. O díptico se encerra na forma de uma extensa e impessoal reconstituição. Quando o filme termina, ele parece estar apenas começando.
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