Crítica
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Sinopse
Em cumprimento ao seu trabalho como oficial de justiça em Salvador, Íris entrega mandados e, muitas vezes, se vê forçada a executar ordens que vão diretamente contra aquilo em que acredita. O ofício a atormenta. Um dia, com o desaparecimento de um militante depois da execução de um mandado entregue por ela, a oficial passa a investigar o crime e se vê envolvida na descoberta de um grande esquema de grilagem de terras.
Crítica
Há uma inevitável sensação de incômodo que permanece com o espectador do início ao fim de A Mensageira. E é bem provável, por sua construção narrativa, ritmo dos acontecimentos e proposta de atuação, que tenha sido exatamente essa a sensação almejada pelo diretor Claudio Marques. Isso não quer dizer, necessariamente, que apenas por ele ter alcançado os seus objetivos, que a obra que agora se apresenta seja feliz em todos os seus intentos. Há alguns, aliás, que extrapolam o campo fílmico, indo para além do que se vê em cena – e, ao menos em casos como esse, tal discussão se confirma difícil de ser contornada. Pois, a despeito das melhores intenções envolvidas, o fato é que se tem aqui um profundo mergulho no tema da negritude e no quanto este foi (e ainda é) um elemento definidor do país, mas que, por sua vez, na condução se encontra um homem branco que, por mais que tenha se dedicado ao estudo e à pesquisa do tema, algo fácil de se pressupor que de fato tenha ocorrido, não o tem em si de forma intrínseca. O problema, como se percebe, talvez seja maior do que esse ou qualquer filme possa abraçar de forma isolada – é um debate amplo e recorrente. O que se mostra inegável, no entanto, é que a despeito deste possível ruído, há decisões corajosas e autorais envolvidas, e por assumi-las com ousadia o conjunto faz por merecer uma atenção detalhada.
O nome dela é Íris, e este não é apenas um detalhe. A designação vem de uma parte imprescindível do conjunto visual, que responde, entre outras, por duas funções de grande destaque: não apenas é por ela que se oferece o colorido ao olho, como é o recurso que controla a quantidade de luz que acessa a pupila, aumentando-a (no escuro) ou a reduzindo (na claridade). A Íris vivida com entrega e por meio de uma determinação quase feroz por Clara Paixão é, também, a mensageira do título. Oficial de justiça, tem entre suas responsabilidades transmitir as más notícias decididas por juízes e demais agentes hierarquicamente acima dela. Mulher negra, é da mesma cor de muitos daqueles que se vê obrigada a se posicionar em rota de colisão: famílias desapropriadas de terrenos do governo, moradores expulsos dos próprios apartamentos, indivíduos conduzidos sem possibilidade de resistência à delegacia mais próxima. Quando um dos afetados por suas ações se volta a ela clamando por razão, se limita a dizer “estou apenas cumprindo ordens”. Como se a ela não competisse refletir sobre as consequências destes atos. Isso, ao menos, até que deixa de reproduzir um comportamento moldado pelo tempo e passa a enxergar, enfim, o que se passa ao seu redor.
O estopim dessa mudança é Anderson (o escritor e ativista Hamilton Borges), que é levado para prestar depoimento em uma delegacia e desaparece, sem que ninguém pareça saber do seu paradeiro. A esposa o procura, mas as portas que bate lhes são silenciosas. No desespero, retorna justamente àquela que o tirou de si: a funcionária do departamento de justiça. Íris, assim, começa a, enfim, abrir os olhos. E aqueles ao seu redor tem muito o que esconder, e mais um tanto a dissimular. Sua ingenuidade, nesse ponto, é paradoxal: ao mesmo tempo em que os recados lhes eram dados pela melhor amiga, pelo amante, pelos afetados pelos seus atos, insistia em se manter cega às consequências, como se fosse apenas uma ferramenta posta em funcionamento, sem se importar por quem, e contra quem. Enquanto parte de uma engenharia mais complexa, se imaginava confortável e até mesmo distante do que resultava de suas ações individuais. Porém, a partir do instante em que se percebe também responsável por estes atos, estar consciente da barbárie que, como tantos outros, acaba por provocar, se vê sujeita a um preço talvez alto demais a ser cobrado.
Em certo momento da trama, um homem desconhecido (Vladimir Brichta, em participação especial) chega até ela e tenta lhe convencer a adquirir um novo apartamento, muito maior e melhor localizado do que aquele onde mora hoje. Sua recusa é imediata (“não tenho condições para isso”, alega), mas da mesma forma rapidamente rejeitada: “não se preocupe com o isso, como você irá pagar a gente vê depois”, alega o rapaz. “O que importa é o prazer da vista que este lugar irá lhe proporcionar”, afirma. É uma passagem até mesmo rápida, quase alienígena ao resto do filme, mas que serve como um forte comentário sobre um Brasil cada vez mais preocupado com o gozo imediato, empurrando para debaixo do tapete as obrigações que deste esforço advém. É como se importasse apenas o agora, e ninguém mais tivesse olhos para o amanhã (ou ciência do ontem). Neste acaso temporal, há uma tentativa enganosa de fazer da cor da pele apenas uma questão biológica, desprezando suas implicações sociais, culturais e econômicas. Eis, portanto, a missão de Íris: resgatar aquilo que dela faz parte de modo essencial, pois sem tais elementos ela própria não será capaz de se reconhecer.
Mas como evitar o entendimento de que a voz por trás desse discurso não é a dessa personagem, e, sim, a do diretor e roteirista, alguém que historicamente compartilhou dos mesmos privilégios que estas figuras que na ficção merecem ser combatidas por meio de um processo de tomada de consciência? Qual o recado que este A Mensageira tem, enfim, a transmitir? O discurso explorado dramaturgicamente ou o debate narrativo que extrapola o imaginado e contamina também bastidores e leituras complementares? O questionamento é intrincado e complexo, e o melhor a ser feito é evitar conclusões apressadas. Portanto, pelo muito que agrega e propõe, eis um filme disposto a ir além do lugar comum. Se assim o faz com efeito, eis o cerne do debate. Porém, que se evite posturas superficiais e avaliações prematuras: a discussão está só começando, e num país tão contraditório como este, é saudável tal disposição por assumir riscos. Por maior que seja o risco de se queimar no processo.
Filme visto durante o 13o Olhar de Cinema, Festival Internacional de Cinema de Curitiba, em junho de 2024
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