Crítica
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Sinopse
Jesus e Maria formam um casal em crise após o nascimento do primeiro filho. Mas, nada que se compare ao que virá depois de ele bater o pé ao decidir comprar uma extravagante mesa de café que muda completamente suas vidas.
Crítica
No cinema existe uma diferença substancial entre a surpresa e o suspense. E, muitas vezes, essa distância é determinada pela quantidade/qualidade de informações fornecidas ao espectador e aos personagens. O britânico Alfred Hitchcock defendia o suspense acima da surpresa, para isso exemplificando com a utilização das bombas nos filmes. Segundo ele, se um artefato explode inesperadamente em cena, a plateia é pega de surpresa e o impacto disso tende a ser pouco duradouro. Mas, se diferentemente das pessoas envolvidas, formos previamente informados da existência de explosivos no recinto, seremos convidados a auxiliar no “cozimento” do suspense, pois de certa forma participaremos do jogo. Em A Mesa da Sala de Jantar é exatamente esse mandamento hitchcockiano que o cineasta Caye Casas segue a fim de manter quase 90 minutos de uma tensão angustiante. Depois do começo em que sobressai uma fina membrana de ironia, na disputa banal entre marido e mulher que divergem sobre a compra de uma mesa de muito mau gosto, não demora para uma situação tétrica definir os rumos da trama. Jesus (David Pareja) teima que o móvel formado por duas estátuas femininas segurando um vidro “inquebrável” ficaria bem no apartamento novo. Já sua esposa, Maria (Estefanía de los Santos), insiste em denunciar a feiura e a inadequação da peça. No fim das contas, o homem vence a tola disputa.
Seria imprecisa a afirmação de que o privilégio do suspense inibe totalmente a surpresa em A Mesa da Sala de Jantar. Sim, pois nada prepara o espectador para algo aterrador que acontece depois de mais uma discussão entre os membros desse casal em crise – na fase posterior a finalmente terem conseguido o tão sonhado filho. Jesus fica em casa montando a mesa, lidando com parafusos faltantes e outros pormenores comuns, enquanto Maria vai ao supermercado comprar mantimentos ao futuro jantar com o cunhado e a sua namorada. Inesperadamente (olhem a surpresa), um acidente doméstico cria o cenário que envolve a vida frágil da criança tão sonhada pelos pais de primeira viagem. No entanto, é exatamente nesse ponto que podemos compreender a supremacia do suspense sobre a surpresa. Pois, mesmo que esse texto entregasse de bandeja o que acontece com o pequeno enquanto ele estava sob os cuidados do pai, isso não seria suficiente para estragar o fundamental da experiência. Caye Casas não está interessado em sustentar seu filme num evento específico que surge repentinamente, mas nas consequências dele, naquilo que advém da cumplicidade cinematográfica entre um homem desesperado e uma plateia que sabe muito mais do que todos os demais personagens em cena. Quando Maria chega em casa, nós sabemos que há uma “bomba” no recinto, enquanto ela não.
A Mesa da Sala de Jantar lida bem com a expectativa sobre que acontecerá quando a mulher descobrir o destino funesto de seu pequeno inocente. E, para isso, cola a nossa percepção na angústia inominável de um pai que precisa, antes de qualquer coisa, encobrir os rastros da sua imprudência que resultou em tragédia. É exatamente nesse desenvolvimento que Caye Casas demonstra habilidade na execução da cartilha hitchcockiana, sobretudo no que diz respeito à manutenção de um elemento macabro no recinto em que adiante todos confraternizam. Mais ou menos como o mestre do suspense fez em Festim Diabólico (1948), que tinha literalmente um cadáver incógnito na sala de um apartamento, o realizador espanhol insere um componente no cenário que, uma vez descoberto, poderia fazer aquela situação se transformar num verdadeiro cataclismo familiar. Porém, em vez de investir na perigosa proximidade dos ignorantes do tal item macabro, Caye prefere manter a nossa atenção quase toda voltada ao sofredor Jesus. É como se em boa parte do filme ele passasse destroçado por uma espécie de clarividência, já que está antevendo a tempestade que em breve cairá sobre sua existência. É bastante engenhoso esse itinerário em que a câmera enfatiza implacavelmente o semblante em ruínas desse sujeito, cujo rosto suado demonstra as respostas físicas ao panorama que vem aí.
Além dessa perícia ao transferir ao espectador a tortura de Jesus, Caye Casas preenche algumas lacunas com informações adicionais interessantes. Umas delas é a própria forma da mesa. Com duas mulheres numa posição fisicamente dolorosa servindo de apoio a um vidro pesado, não seria ela um símbolo tosco do anseio masculino pela subserviência feminina? E isso ganha camadas se contraposto ao discurso inconformado do marido pela personalidade dominante da esposa (ele reclama que ela escolheu tudo da decoração do novo apartamento). Não obstante, os próprios nomes dos protagonistas (Jesus e Maria) são provocações, ainda que qualquer subtexto religioso fique restrito a esse batismo e a alguns vislumbres de esculturas católicas com o nazareno na cruz. A subtrama da vizinha pré-adolescente que chantageia Jesus depois de fantasiar um envolvimento amoroso serve tão e somente para preparar o terreno à deflagração de uma crise maior – é a ameaça de um colapso X que acaba provocando o surgimento do colapso Y. Mas, voltando ao cozimento desse suspense que adquire traços bastante aflitivos lá pelas tantas, o realizador acrescenta à óbvia expectativa de Jesus alguns sintomas de sua desorientação, como o choro fantasma supostamente ouvido por meio da babá eletrônica e outros sinais de sua deterioração psíquica. No entanto, nada que faça o filme enveredar por um terreno vago. O que temos é a noção de que Jesus está ouvindo as trombetas do seu apocalipse.
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