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Crítica


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Sinopse

Prestes a ser pai pela primeira vez, o cineasta Assaf recebe a notícia de que Tel Aviv sofreu um ataque. Yoel, seu pai, quer convencer todos a irem para um lugar seguro, mas antes é convencido pelo filho a ser protagonista de um filme.

Crítica

Especialmente após a assimilação das teorias da chamada Política dos Autores, promulgada pelos críticos da revista Cahiers du Cinéma nos anos 1950, graus de pessoalidade ganharam ares de atributo quase essencial. Então celebradas, recorrências temáticas e/ou estilísticas, por exemplo, estariam a serviço da revelação de uma visão de mundo (macro e micro) particular e única. Adesões à parte a essa característica formal que há alguns surge como premissa, A Morte do Cinema e do Meu Pai Também é uma produção profundamente íntima. Isso, não apenas porque seu diretor Dani Rosenberg utiliza como fio condutor o verídico avanço do câncer que tornou iminente a morte do pai, mas por, nesse processo doloroso e intrincado, com diversas camadas ora se justapondo, ora sobrepondo-se, revelar o prisma através do qual filtra as relevâncias. Aparentemente, o longa vale o quanto consegue instigar pelo trânsito entre os âmbitos ficcional e documental, imbricando razões de aspecto e texturas para nos conduzir por essa viagem profundamente emocional feita de perdas e ganhos.

Porém, A Morte do Cinema e do Meu Pai Também transcende os níveis superficiais dessa lógica frequentemente utilizada no cinema contemporâneo, a de sublinhar a opacidade dos limites entre ficção e documentário. Ao testemunho verídico do pai, Yoel, chamando-lhe à responsabilidade, ponderando que a chegada do neto prevalece sobre o filme, Daniel apresenta fragmentos encenados da farsa que pretendia fazer com o protagonismo do genitor. Já nessa fase inicial, o longa permite uma reflexão acerca do fazer cinema, vide os atores interpretando bastidores, falando de dificuldades para conseguir certa intenção, discutindo contingências de produção e afins. Aos poucos, o conjunto, que contém gradações e latitudes se intercalando e eventualmente confundindo-se, se concentra na melancolia vultuosa diante da consciência dura da impermanência. Mesmo a Sétima Arte, supostamente capaz de desafiar a finitude, é frágil. Isso fica escancarado na cena em que Marek Rozenbaum, intérprete do pai, vocifera a vulnerabilidade dos suportes. Entretanto, há uma ambivalência nisso, haja vista o elogio ao cinema como possível guardião das heranças.

À medida que o drama abraça a natureza imperativa da morte, recorre também ao cinema como dispositivo para auxiliar a memória. Diante da avó, Daniel tenta estimular suas fugidias lembranças, logo depois dispondo das imagens em movimento da circunstância mencionada, esquecida pela idosa, para não deixar aquilo esvanecer. Um dos traços mais bonitos de A Morte do Cinema e do Meu Pai é a constatação, não verbalizada, apresentada por meio dos curtas amadores que o cineasta fazia na sua tenra juventude, protagonizados exatamente pelo voluntário pai não ator, de que ao realizador o homem prestes a morrer é parte primordial de seu imaginário cinematográfico. Se trata, em várias medidas, de uma engenhosa e comovente homenagem póstuma ao incentivador, ao sujeito que deu corpo e voz aos primeiros personagens contidos num percurso iniciativo essencial. Ainda sobra espaço para uma meditação, igualmente desprendida desse rico jogo cênico, a respeito da (des)importância da arte em comparação com a paternidade, o casamento e demais elos afetivos.

A despeito de filigranas, tudo é fundamentalmente representação. Mais do que empenhado em brincar com as fronteiras virtuais, A Morte do Cinema e do Meu Pai está preocupado justamente com o contrário, ou seja, em mostrar que aquilo, independentemente da natureza (se performado ou testemunhado) não é a realidade, mas uma reprodução a ser projetada. A ficção tem a capacidade de tornar certos instantes ainda mais fortes dramaticamente falando, com isso prevalecendo eventualmente sobre os apontamentos formalmente crus e com as pessoas reais diante da câmera. Embora pontue discrepâncias a particularidades, Dani Rosenberg cria pontes consistentes entre as potencialidades das imagens em movimento, em meio a essa análise técnica e filosófica também ponderando ligações que substanciam o ser humano como parte do coletivo. Ele oferece um trajeto absolutamente pessoal, alicerçado em privacidades fustigadas pelo cinema, deixando à mostra sua obsessão, lendo-se enquanto personagem e homem, não os distinguindo plenamente, mas os mesclando.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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