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Crítica


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Sinopse

A valente e altamente habilidosa Nanisca é a general que precisa treinar uma nova leva de recrutas guerreiras para a batalha de vida e morte contra um inimigo disposto a acabar com o modo de vida das mulheres que ela lidera.

Crítica

Daomé foi um reino africano que realmente existiu entre os anos de 1600 e 1904. E uma de suas características mais marcantes era a unidade militar de amazonas chamadas Ahosi (ou Mino), formada por notáveis guerreiras criadas desde cedo na arte e na disciplina da batalha. Elas serviram de inspiração para as Dora Milaje, a brigada feminina que protege Wakanda nos quadrinhos do Pantera Negra. Portanto, há um lastro histórico em A Mulher do Rei, ainda que estejamos diante de um filme mais preocupado em combinar ação e melodrama para celebrar o poder da negritude feminina. Nessa ficção marcada pelas ironias de um destino que prega peças em combatentes de lados distintos e que aponta o tráfico negreiro como agente de aniquilação do orgulho africano, a protagonista é Nanisca (Viola Davis), a impiedosa líder das mulheres que resguardam os interesses de um reino soberano, mas, de certo modo, cativo. A cineasta Gina Prince-Bythewood enfatiza o aspecto ritualístico ao apresentar as Agojie – nomenclatura das amazonas no filme. Nesse sentido, destaque à reverência dos cidadãos comuns quando as combatentes retornam de batalha (todos ficam de cabeça baixa, sem encara-las). Ainda na fase de apresentação do filme, o destaque aos costumes deixa muito claro que os valores tradicionais são a base do império, bem como dessa essencial irmandade de mulheres duras e letais.

A fotografia assinada por Polly Morgan ressalta os tons terrosos dos figurinos e cenários, demarcando assim a identidade visual ao filme. A bonita Daomé é uma nação sem condições imediatas de prescindir dos acordos nefastos e da sujeição aos desmandos dos seus vizinhos mais poderosos. Já Nanisca é ladeada por, ao menos, duas coadjuvantes imediatas que frequentemente roubam a cena: Izogie (Lashana Lynch) e Amenza (Sheila Atim), escudeiras que a ajudam a colocar a casa em ordem e a observar as contradições do reino sob uma perspectiva pragmática (e feminina). Embora o rei Ghezo (John Boyega) dê as cartas, exercendo seu machismo ao ter várias esposas, são as Agojie que garantem a independência e pregam a modernidade. É exatamente Nanisca quem tenta convencer o mandatário sobre o fim da entrega de africanos aos mercadores brancos que vêm do além mar em busca de mão de obra barata a ser forçada. As mulheres empoderadas pela vitalidade bruta sugerem romper os grilhões que desterram seus irmãos continentais, propondo uma forma sustentável (por meio da agricultura e do beneficiamento dos frutos) de quebrar um ciclo vicioso de exploração e miserabilidade. No entanto, como citado no começo desse texto, estamos diante de um melodrama de ação, no qual os personagens são valiosos pela forma como são encaixados em determinados modelos e contextos.

Quem serve de fio condutor ao olhar do espectador é a pequena Nawi (Thuso Mbedu), jovem despejada pelo pai no palácio real depois de recusar veementemente o casamento com um homem bem mais velho e de comportamento abusivo. É por meio dessa personagem que observamos o modus operandi e a doutrina de guerra das Agojie. Antes condenada a uma vida de submissão a um sujeito que nega sua autonomia ao negocia-la com o pai, ela ganha a oportunidade de sobressair individualmente desde que esteja pronta ao sacrifício em prol do coletivo. Gina Prince-Bythewood cola a câmera nessa menina e a partir dela revela as personagens antes adequadamente situadas no tabuleiro de Daomé. É na interação com a menina que nos afeiçoamos a Izogie, aquela que assume uma postura de irmã mais velha. A menina provoca as contradições de Nanisca, inclusive por colocar em xeque a obediência cega. A insubordinação dessa jovem é coerente com um roteiro de empoderamento que não fica apenas na superfície de um discurso fácil. Nem tudo está nas palavras, afinal de contas as ações e os demais gestos diante das adversidades também são descritivos. E, como reza a cartilha do melodrama, o filme sublinha coisas primárias, tais como: amor, vingança, antagonismo, incertezas, ironias do destino, etc. É nessa epiderme que moram os princípios. Os mergulhos psicológicos e/ou emocionais são rasos.

Muito se engana quem acredita que A Mulher Rei se restringe apenas a Viola Davis – que está ótima, por sinal, transitando entre o poder das lendas e a fragilidade humana. Lashana Lynch, Sheila Atim e Thuso Mbedu aproveitam muito bem os espaços concedidos para fazer de suas personagens mais do que escoras coadjuvantes. Ainda dentro das ferramentas melodramáticas utilizadas para contar a história, há um espelhamento esquemático entre a mentoria de Izogie a Nawi e o auxílio que Amenza presta a Nanisca, a amiga confidente de longa data. As coincidências essenciais para apresentar a turbulência pessoal da personagem de Viola Davis podem parecer convenientes demais, mas elas são sustentadas por dois pilares: 1) a coerência com o melodrama, subgênero no qual muitas vezes a ironia escrachada do destino é uma peça valiosa dentro de uma construção realmente dada a exageros e afins; 2) o aspecto místico da sina que deve ser cumprida de determinadas maneira para as jornadas se mostrarem ora redentoras, ora reparadoras. Até para dar mais substância ao destino orientado por forças insondáveis, a cineasta poderia ter elaborado melhor o lado religioso de Daomé. No entanto, ela prefere manter os pés no chão, inclusive quanto à ação, vista em sequências cheias de intensidade em que as coreografias de luta são valorizadas e os movimentos sobressaem.

A entrada dos brasileiros em cena acentua o discurso antiescravagista de A Mulher Rei. Numa mudança de prioridades que poderia ser mais bem preparada (é verdade), o grande vilão deixa de ser o reino que pretende subjugar Daomé e passa a ser o tráfico negreiro. É nesse ponto que a ação fabulada, daquilo que é inventado, se encontra mais diretamente com ação histórica. Felizmente, o longa não força o ecumenismo entre os antagonistas (que soaria falso), mas desvia ligeiramente o foco ao combate dos sul-americanos que, a despeito das orientações da Inglaterra (o país que comandava o mundo na época), insistiam em traficar africanos. Há “gorduras” que podem ser compreendidas como infelizes concessões. Uma delas é o envolvimento entre a herdeira guerreira e o filho que conhece a terra natal da mãe escravizada. Ainda mais descartável é Malik (Jordan Bolger) desfilando de peito desnudo gratuitamente, sem cerimônias. Nanisca quase se perde um pouco diante do algoz que se torna a missão pessoal em meio às tarefas que ela precisa assumir como líder das Agojie. Viola Davis transita sensivelmente entre os estados conflitantes da mulher que se considerava imune à violência por conta do poder adquirido, mas cujas cicatrizes são expostas pela reiteração dessa brutalidade. É preciso fazer ouvido de mercador a certos diálogos pobres e também vista grossa a certas incongruências – como o dente de tubarão comprobatório e a luta com o braço quebrado – mas o saldo é bastante positivo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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