Crítica
Leitores
Sinopse
Sobrevivente da briga sangrenta entre seu marido e seu amante, uma mulher que mora num bairro pobre de Havana, Cuba, decide fugir com o seu filho para poupá-lo do escândalo. Mas, um vídeo da situação acaba viralizando.
Crítica
Depois de um começo muito bonito, em que a fisicalidade da dança e do sexo funciona como manifesto sensorial da natureza livre (emancipada) de Yolanda (Lola Amores), a protagonista deste filme cubano selecionado para o 33º Cine Ceará se depara com uma possível tragédia. Fugindo de uma descrição detalhada sobre o que poderia ter acontecido na casa dela, o cineasta Alán González deixa pistas sobre uma disputa sangrenta entre o marido e o amante dessa mulher que há pouco tempo exercia sua independência de modo carnal. A cama ensanguentada, a câmera trêmula que tenta incutir no espectador a sensação de urgência, as falas entrecortadas e/ou pela metade. Tudo aponta para um laconismo que poderia ser muito interessante. Isso se a ausência de informações fosse uma forma de deslocar a atenção do “o quê” para a pergunta “e agora?”. Isso se o filme se propusesse a quebrar expectativas e tirar a atenção daquilo que aconteceu (e está feito, é irremediável) para o que ainda pode existir e/ou persistir. No entanto, com o andar da trama, as coisas continuam sem força dramática, num fluxo um tanto dispersivo de informações e conexões humanas insuficientes para injetar substância na história. Yolanda é vigiada por um homem de máscara (acessório comum em tempos de pandemia), perambula esbaforida por Cuba, tem de lidar com o fato de viralizar na internet, mas nada disso é tão forte.
A Mulher Selvagem é aquele tipo de filme em que somos provocados a seguir alguém em fuga. Uma vez envolvida numa possível tragédia (da qual pouco se sabe efetivamente), ela decide fugir com o seu filho antes que o escândalo tornado célebre nos grupos de whatsapp crie uma situação ainda mais constrangedora e estranha entre os dois. Há certa ingenuidade na maneira como as imagens dessa fuga (literal e metafórica) são construídas, quase sempre com a câmera trepidante enquadrando a protagonista de costas diante de um mundo em ruínas prestes a desabar. Além disso, a direção deixa visíveis algumas marcas de cena, o que dificulta muitas vezes a nossa adesão emocional, pois há breves instantes em que a ilusão é involuntariamente quebrada pela percepção de que alguém do elenco está esperando a sua deixa ou mesmo respondendo de modo mecânico à réplica de um colega. Essa dificuldade diretiva para criar tensões verossímeis compromete as interações de Yolanda com sua mãe – nas situações em que ela se depara com velhas feridas enquanto atende as demandas da sua exasperante situação – e com seu filho, diante de quem solicita implicitamente um esquecimento acelerado do passado em prol de uma possibilidade de futuro imediato. Uma vez que as conexões com os dois coadjuvantes são dramaticamente pouco densas, o filme acaba se tornando um refém da apatia.
Outra coisa que se pode dizer de A Mulher Selvagem é: trata-se de um daqueles filmes menores do que a sua intérprete principal. Lola Amores tem um trabalho muito intenso de composição dessa personagem que começa expressando uma liberdade feminina contagiante e bonita de se ver, mas logo obrigada a se deparar com as consequências de uma contenda masculina. Alán González poderia trabalhar melhor essa ideia de que Yolanda é colocada no centro de uma crise existente apenas porque um homem se sentiu no direito de atentar contra a vida de outro por ciúmes. Ainda que esteja no centro da situação, que seja seu vértice, a mulher é colocada nesse turbilhão e exposta publicamente como uma traidora porque um dos homens com os quais se relaciona resolveu recorrer à violência para, talvez, proteger a sua honra, assim atendendo a uma lógica muito machista e possessiva que persiste. No entanto, o realizador prefere deixar essa e tantas outras coisas nas entrelinhas, evitando apontar/resolver demasiadamente (o que é muito bom), mas errando a mão ao exagerar nas evasões. Convenhamos, é louvável quando um cineasta evita expedientes didáticos, quando aposta na inteligência da plateia, mas para isso funcionar é preciso instiga-la com ideias e proposições que a façam querer saber/sentir mais. Infelizmente não é o acontece no filme cubano, pois Alán insiste numa economia improdutiva.
Um dos aspectos curiosos de A Mulher Selvagem é que ele foi rodado enquanto ainda persistia a pandemia da COVID-19, haja vista as pessoas utilizando máscaras e os protocolos sanitários estampados nas paredes do hospital em que Yolanda vai visitar alguém que julgava morto. Mais um elemento contextual que a direção subaproveita, pois não há nada que indique um acréscimo emocional pelo fato de a trama acontecer durante uma das crises de saúde mais graves dos últimos séculos. Yolanda transitando esbaforida por Cuba com a máscara no queixo, evidentemente se expondo aos perigos do coronavírus, é apenas um componente visual, nada que acrescente camadas ao périplo dessa mulher que precisa fugir da opinião pública e ainda lidar com as tensões familiares no meio do caminho. No fim das contas, o longa-metragem acaba desperdiçando uma personagem muito interessante, especialmente pela forma como inicia o filme afirmando a sua liberdade incondicional, a colocando numa longa jornada Cuba adentro em que o cenário não é valorizado por seu simbolismo, na qual as relações íntimas são sabotadas pela falta de verossimilhança e em que essa posição da mulher (numa sociedade ainda muito afetada pelo machismo) é pouco enfatizada como terreno vulnerável. O resultado dessas perdas todas é um filme repleto de potenciais que pouco se confirmam e de situações bastante vagas.
Filme visto no 33º Cine Ceará, em novembro de 2023.
Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)
- Cobertura :: 11ª Mostra de Cinema de Gostoso (2024) - 21 de novembro de 2024
- Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal - 21 de novembro de 2024
- Calígula: O Corte Final :: Produção polêmica volta aos cinemas em versão inédita - 19 de novembro de 2024
Deixe um comentário