Crítica
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Sinopse
Hercule Poirot está aposentado e morando em Veneza, na Itália, depois da Segunda Guerra Mundial. Relutantemente, ele vai a uma sessão espírita e é surpreendido por um assassinato.
Crítica
A transformação do atarracado, sexagenário, roliço e metódico Hercule Poirot imaginado por Agatha Christie em seus livros no tipo atlético (e, por vezes, quase heroico) vivido por Kenneth Branagh na série de filmes por ele também comandada – que teve início com Assassinato no Expresso do Oriente (2017), há menos de uma década, e que agora chega ao seu terceiro episódio – já deveria servir como indício de que tais liberdades tomadas nessas adaptações contemporâneas de uma obra que possui mais de meio século de existência não se dariam como suficientes apenas no visual do seu protagonista. Após o malfadado Morte no Nilo (2022) – abatido não apenas pela pandemia do Covid-19, que prejudicou seu lançamento nos cinemas, mas também por ter estreado em meio às polêmicas envolvendo um dos seus intérpretes, o ator Armie Hammer, acusado de, entre outras coisas, canibalismo (!) – tem-se agora uma proposta mais ousada, e talvez por isso mesmo, mas desprendida de amarras pré-concebidas: A Noite das Bruxas tem muito pouco – para não dizer quase nada – relacionado com o livro de mesmo nome no Brasil (no original, os títulos são até diferentes: Halloween Party, por Christie, e A Haunting in Venice, por Branagh – algo como Festa do Dia das Bruxas e Uma Assombração em Veneza, respectivamente). Alterações essas que, ao invés de permitir maior ousadia em sua abordagem, curiosamente resultam em uma obra ainda mais contida, com vergonha de se livrar da origem literária, ao mesmo tempo em que não consegue abraçar com efeito as influências modernas que se esforça em compartilhar.
Típico filme realizado em meio às limitações sanitárias impostas neste mundo pós-Covid – elenco enxuto, um único cenário, ação se desenvolvendo em um curto período de tempo – A Noite das Bruxas começa com um Poirot já distante das grandes aventuras que teriam marcado o auge do seu trabalho como investigador particular. Vivendo uma espécie de semi-aposentadoria em um dos seus destinos favoritos – sai o pequeno vilarejo do interior da Inglaterra da fonte primária e entra em cena uma sempre estonteante Veneza, repleta de canais e caminhos secretos – ele já criou como hábito fugir de novos pedidos relacionados a casos aparentemente insolúveis (a ponto de manter um segurança privado que tem como função quase que exclusiva impedir que novos solicitantes cheguem até ele). Porém, mesmo com todas essas ressalvas, uma antiga conhecida – Poirot não tem amigos, apenas conhecidos – consegue chegar até ele, e portando uma demanda, no mínimo, fora do comum: naquela mesma noite, após a tal festa do Dia das Bruxas a se comemorar nessa data, uma reunião bastante particular irá ocorrer, e a presença dele seria imprescindível para comprovar a veracidade ou não das revelações proporcionadas pela convidada especial, ninguém menos do que uma médium, mulher essa que afirma conseguir se comunicar com os mortos.
Eis, portanto, os presentes neste cenário escolhido: a anfitriã (Kelly Reilly, com a postura adequada denotando uma decadente riqueza), o médico (Jamie Dornan, esforçando-se para ser levado a sério) e o filho dele (Jude Hill, repetindo a mesma relação filial vista em Belfast, 2021), a babá (Camille Cottin, de Dez por Cento, 2015-2020, atuando sem exageros num limiar entre temor e culpabilidade) e o noivo abandonado (Kyle Allen, deslocado). Além, é claro, da mediúnica (Michelle Yeoh, apostando num exotismo que não lhe parece mais necessário), seus dois ajudantes (Emma Laird e Ali Khan), Poirot e o segurança (Riccardo Scamarcio, mal aproveitado) e, claro, a responsável por levar o detetive ao encontro, a escritora Ariadne Oliver (Tina Fey, incapaz de submergir no personagem). O objetivo é simples: aquela que os recebe deseja se comunicar com a filha, falecida há menos de um ano, em um acidente até hoje sem muitas explicações, que muitos afirmam ter sido um suicídio. Porém, quando uma outra morte ocorre logo no começo da noite, rapidamente ficará claro que há muito a ser escondido – e outro tanto a ser revelado apenas em parte, na medida dos interesses daqueles por trás de cada ação. Caberá a Poirot, portanto, solucionar os mistérios propostos. Mas não contando apenas com o seu poder de observação e lógica, como lhe é de praxe. Dessa vez, o sobrenatural irá se manifestar ao seu lado – ou não.
Em nenhum dos escritos de Agatha Christie suas criações tiveram que lidar com fantasmas ou assombrações. Porém, essa parece ser uma tendência dos tempos atuais, cada vez mais afeitos à sagas como Invocação do Mal ou séries como A Maldição da Residência Hill (2018). Realizadores como James Wan e Mike Flanagan popularizaram um subgênero do terror acostumado ao susto inesperado e sem explicações, que transite por temores íntimos de suas vítimas e tenha como origem questões mal resolvidas do passado – basicamente o que Michael Green, roteirista indicado ao Oscar por Logan (2018), se esforça em alcançar em A Noite das Bruxas. É como se ele tivesse concordado com a obrigação de lidar com figuras tão icônicas, mas optado por percorrer um caminho diverso, longe daquele com os quais estes tipos se acostumaram a percorrer, percorrendo outras paragens, ambientes com os quais estes não apenas não se encaixam, mas também se mostram desconfortáveis. Poirot é símbolo de inteligência e percepção, suas escolhas e apostas são sempre muito bem fundamentadas e, na maioria das vezes, não fruto de um dom especial, mas resultado do mais básico fato de olhar para onde ninguém mais se dirigiu. Aqui, no entanto, ele se mostra como mais um marionete de um jogo que não só não lhe pertence, mas também ao qual pouco tem a oferecer.
Por mais que a direção de arte de John Paul Kelly (A Teoria de Tudo, 2014) se esforce em fazer do antigo palazzo veneziano um cenário mais rico do que de fato é, e que a montagem de Lucy Donaldson (Últimas Notícias de Yuba County, 2021) tente dotar de um mínimo de dinâmica as tantas idas e vindas possíveis de se dar em um mesmo ambiente, A Noite das Bruxas nasce e morre na falta de determinação de Kenneth Branagh, aparentemente tão exausto da pele de Poirot quanto o mesmo se mostra na ficção. Armado de respostas rápidas e uma baixa tolerância aos questionamentos que lhes são feitos – abandonando, portanto, uma das suas principais características, um refinamento de causar inveja aos ingleses – o ilustre belga se mostra tão descontente em Veneza como supostamente estaria em qualquer outro lugar, desprezando também o contexto geográfico que a transposição deveria privilegiar. Assim, envolto em um enigma genérico resolvido sem muita participação do seu intelecto, eis enfim um whodunit (ou seja, um quem é o culpado?) que falha no mais básico – o despertar da intriga – por maior que seja a pompa e circunstância reunida, um disfarce luxuoso para o tanto de nada que tem a dizer.
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