Crítica
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Quando o cineasta David Lynch lançou a série Twin Peaks (1990-2017) a pergunta “quem matou Laura Palmer?” intrigou durante semanas o público norte-americano e depois outros mundo afora. Lynch não estava “inventando a roda”, pois utilizou o clássico recurso narrativo do whodunit (quem fez?) como um propulsor. Sua intenção principal era revelar o lado sombrio da aparentemente pacata cidade interiorana onde a trama acontece. Portanto, ele reciclou a estratégia banal, praticamente um clichê de abordagem, e a transformou no poderoso extrator da podridão subterrânea de Twin Peaks – não se restringindo à interrogação sobre a identidade do assassino. Outra série, a recente Mare of Easttown (2021), utilizou à sua maneira o whodunit, não se focando na ideia de que vários personagens tinham motivos para matar a jovem, preferindo a isso construir a noção de que diversos vizinhos e conhecidos da vítima seriam capazes do ato hediondo. Por sua vez, Zodíaco (2007) demonstrava quase desinteresse pela caçada ao homicida, pois seu foco ia se estreitando na obsessão dos investigadores. Essas obras reaproveitaram o whodunit ao seu modo, adicionando personalidade ao senso comum. A Noite do Dia 12 entra nessa categoria de iniciativas que se valem do bom e velho “quem fez?” para enfatizar outras coisas. É indicativo que a montagem mostre paralelamente a promoção de Yohan (Bastien Bouillon) na polícia e o assassinato bárbaro de Clara Royer (Lula Cotton-Frapier).
Esse paralelismo é sugestivo de uma conexão: a morte dela vai pairar sobre ele como um fantasma por anos. Todavia, essa simetria entre a vida interrompida e a existência assombrada não é feita em linha reta. Ela é sinuosa e difusa. O cineasta Dominik Moll não elege a obsessão ou mesmo a frustração do policial como elementos protagonistas (assim se distanciando de Zodíaco), tampouco sublinha tanto a sordidez da pequena comunidade a partir do crime (se afastando de Twin Peaks) e aparentemente não dá tanta ênfase aos motivos e às predisposições (fugindo à estratégia primordial de Mare of Easttown). Contudo, contradizendo um pouco o que este texto acaba de afirmar, A Noite do Dia 12 se vale de todas essas possibilidades, mesclando-as em busca de tons menos deterministas, da captura de um estado das coisas que envolve incômodos representativos do cenário. Temos o policial obcecado, alguns aspectos inesperados do lugarejo vindo à tona e amostras das pessoas (homens) capazes de ter incendiado o corpo jovial de uma mulher que tinha acabado de deixar o encontro com as amigas. No entanto, nenhuma dessas perspectivas assume a função de linha condutora, pelo menos não ao ponto de orientar as demais. O realizador constrói um panorama evasivo e escorregadio no qual discussões e consequências estão diluídas em gestos ordinários, vide a sequência com o investigador agredindo o suspeito para amenizar frustrações. Um destempero que aponta a algo estrutural.
É notável o esforço da direção para A Noite do Dia 12 não enveredar pelo sensacionalismo e tampouco se tornar um amontoado de teses e psicologismos baratos. A mise en scène refuta o espetáculo policial e mantém a atenção nas rotinas cheias de lacunas e resignações. Yohan é um protagonista mais corriqueiro do que necessariamente especial, nem bem chegando a ser misterioso ou sedutor. O condutor das investigações é um homem para lá de comum, cujas características mais notáveis são a obstinação e a organização. Nada além isso. Desse modo, não estamos diante de um filme dependente do carisma do protagonista e sequer da forma como o caso o desestabiliza. O cineasta francês costura as etapas da investigação com testemunhos de trivialidades exemplares do marasmo tedioso no dia a dia da polícia federal daquela localidade. Enquanto colhe os testemunhos de amigos, ex-amantes, familiares e conhecidos de Clara Royer, Yohan tenta dar suporte ao colega mais velho em crise matrimonial, entra em atritos com subordinados em virtude de abordagens diferentes do caso e é questionado por desconhecidos a respeito do aspecto misógino recorrente num mundo essencialmente masculino. Ele é melhor definido pelo pedalar em círculos num velódromo – cuja imagem representa a vida sem grandes emoções e, apenas numa dimensão menos efetiva, o caso aberto. O roteiro Gilles Marchand e Dominik Moll é bastante habilidoso ao nos manter interessados mesmo diante do trivial.
Clara Royer é, como a Laura Palmer de Twin Peaks, uma jovem loira de comportamento sexual livre que, pela perspectiva misógina do mundo masculino, deve ser punida por isso. Mesmo depois de morta. Em meio à investigação, o realizador coloca em evidência lógicas estruturais que condicionam os gestos dos personagens. Um deles é o machismo como alicerce, mais precisamente a ideia de que as sociedades giram em torno dos umbigos dos homens. A vítima foi morta por um homem e homens estão encarregados da nobre caçada. Enquanto isso, mulheres têm as suas integridades morais questionadas de acordo com o número de parceiros sexuais. No entanto, Dominik Moll evita o panfleto escancarado, a isso preferindo dissolver os efeitos nocivos da sociedade patriarcal até nos personagens inicialmente positivos e bem intencionados. Então, temos um feminicídio (a ocasião hedionda) como sombra que contraditoriamente ilumina de forma sofisticada as áreas obscuras dos policiais dispostos a proteger os oprimidos. Por isso a obsessão, a sordidez da pacata localidade e os motivos dos suspeitos não ganham protagonismo. Em A Noite do Dia 12 não há espaços à captura de monstros que apazigue uma sociedade. As partículas dessas criaturas ameaçadores estão espalhadas até nos “heróis”. Dominik Moll mostra o mal gradativamente sendo camuflado pela monotonia, uma vez que ele não é extraordinário. Com isso, cria o cenário inquietante que evita a urgência como um agravante da realidade.
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