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Crítica


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Sinopse

Um homem, obcecado em se encaixar em um mundo geométrico, enfrenta um dilema. Ele deve se tornar um quadrado ou liberar a verdadeira forma que reside dentro dele?

Crítica

Antes que a computação gráfica fosse sofisticada ao ponto de não mais encontrar limites para representar qualquer coisa passível de ser inventada, a animação era o suporte mais apropriado para projetar cinematograficamente realidades e mundos extraordinários. De toda forma, mesmo que tenha perdido um pouco da primazia sobre esses universos fantásticos, a animação continua sendo um terreno muito fértil para materializar o fruto da imaginação humana. A Outra Forma, coprodução Colômbia/Brasil, tem como protagonista um sujeito que está desesperado para se enquadrar. Vivendo num contexto em que todos forçam a própria natureza em busca de encaixe social, literalmente, nas cobiçadas torres gigantes em que os cidadãos se espremem desconfortavelmente, ele transita pelas ruas com duas prensas achatando a própria cabeça. Pouco a pouco, a circunferência vai dando lugar ao longilíneo formato retangular. Alguns de seus conterrâneos recorrem a procedimentos ainda mais deformadores. A metáfora parece óbvia, se correlacionada à nossa realidade: todos estamos forçando demais a natureza em busca de uma padronização. O ser igual para se adequar. Por que se destacar socialmente, fomentar a própria subjetividade, se é mais aceitável coletivamente a participação de uma manada uniforme? Mas, para além da mensagem, há a força de um visual psicodélico que coloca tudo em movimento.

O cineasta Diego Felipe Guzman aproxima o seu personagem a tantos outros protagonistas de ficções científicas distópicas: ele é o ignorante ordinário que, em determinado momento, será agraciado com um discernimento motivador à necessária revolução. Pense em Matrix (1999), por exemplo, no qual Neo (Keanu Reeves) é chamado à aventura, como o típico representante do mito do herói, negando a sua excepcionalidade antes de assumir a linha de frente de uma mudança drástica. O personagem principal de A Outra Forma segue por um caminho semelhante, sobretudo dentro da ideia do herói sci-fi prestes a transformar o mundo com suas ações. Mas, antes que essa metamorfose aconteça, em ritmo acelerado de aventura lisérgica, há a apresentação de coadjuvantes importantes, como a mulher gradativamente quadrada que começa a ter problemas com um braço dotado de vida própria. Também aparece bastante o garoto perambulando pela cidade com uma caixa de papelão no rosto, aparentemente envergonhado de ainda não ter recorrido a qualquer procedimento torturante para diminuir as curvas de seu corpo em prol dessa necessidade social de ser quadrado para se encaixar. Curiosamente, não há um vilão na trama, sequer alguém que represente uma instância superior controlando tudo e incutindo nos cidadãos a pasteurização. Logo não há apenas um “culpado”.

Dentro dessa viagem hiper colorida e com um visual criativo, a construção de uma sociedade aparentemente autogerida em torno da necessidade de se encaixar é feita sem linearidade clara. Há uma progressão narrativa com certos indícios de passagem de tempo (como os riscos que o protagonista faz na parede para acompanhar o avanço de sua empreitada pessoal), mas nada que mantenha o espectador absolutamente confortável com a cronologia. Quanto tempo se passou do começo ao fim? Não faria sentido, principalmente dentro de um filme orientado por exercícios de liberdade narrativa, ficar ancorado num avanço temporal bem comportado. Então, cria-se esse redemoinho no qual o espectador é convidado a se perder, isso enquanto o protagonista vai tendo indícios de que a ordem coletiva é uma grande burrice. Diego Felipe Guzman estabelece uma inteligente diferença perceptiva entre os personagens e o espectador. As figuras inseridas na trama não enxergam os elementos desse mundo quadrado como nocivos, possivelmente porque estão tão inseridos nesse contexto que nada ali parece estranho ou violento. Diferentemente deles, a plateia é confrontada com uma realidade tão esdrúxula, vide as situações de tortura socialmente aceita como parte do viver em grupo. O visual parece pensado justamente para manter em voga o desconforto, a sensação de que algo torto acontece.

Num dos filmes mais inventivos de Woody Allen, o maravilhoso pseudodocumentário Zelig (1983), o protagonista é um homem-camaleão que mimetiza perfeitamente qualquer pessoa com quem interage. Por medo extremo de ser ele próprio, Zelig quer desesperadamente ser o outro, tanto que seu corpo se metamorfoseia literalmente no outro. A Outra Forma toca nesse assunto, mas de outra maneira, recorrendo a uma coletividade de pessoas que comprometem a sua individualidade em função do projeto de padronização e assassínio do “eu”. Nesse cenário, o protagonista de cabeça achatada não é carregado pela mão por um mentor repleto de informações prévias e sequer tem mastigados os caminhos para sair dessa distopia maluca. Ele simplesmente vai tropeçando na própria sina e, aos poucos, questionando os motivos que o levam ao sacrifício pessoal em prol de algo supostamente benéfico a todos: a ordem. Mesmo que às vezes seja repetitivo, além disso estendendo certos apontamentos mais do que deveria (ocasionalmente pesando a experiência com reiterações dispersivas), Diego Felipe Guzman cria uma fantasia que narrativamente almeja ser livre de amarras convencionais para falar da individualidade como antídoto poderoso à estandardização. Prescindido totalmente das falas, ele é criativo ao propor soluções visuais na elaboração e no desenvolvimento dessa trama doida.

Filme visto no 2º Bonito CineSur em julho de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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