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Sinopse

Uma pequena cidade vive os duros reflexos da ditadura quando dois amigos, Milo e Esnal, resolvem zombar do irritado coronel local sequestrando seu bem mais precioso: a coleção de anões de jardim. A aventura dá errado e as consequências são cruéis para a dupla: Milo desaparece sem deixar rastros, enquanto Esnal sofre isolado. Porém a história pode tomar outra direção depois que as filhas de Milo, desesperadas por notícias do pai, saem em busca de seu antigo amigo suplicando ajuda.

Crítica

A Outra História do Mundo é ambientado na pequena Mosquitos, cidade do interior do Uruguai, no começo dos anos 80, temporada valorizada pela bela fotografia do brasileiro Gustavo Hadba. Na época, o país ainda estava sob o jugo da Ditadura Civil-militar, aliás, como parte das demais nações latino-americanas. A coprodução dirigida por Guillermo Casanova possui um tom agridoce, fruto da hábil construção narrativa que entrelaça a violência, o bom humor e a capacidade imaginativa dos personagens, faculdade esta que serve de emplastro aos anos de chumbo, ao autoritarismo dos fardados. Em revide à ordem do exército para os bares locais fecharem às 22h, os amigos Milo (Roberto Suárez) e Esnal (César Troncoso) resolvem pregar uma peça no coronel interventor, roubando-lhe os anões do jardim e obrigando o locutor da rádio a ler um manifesto indignado da fictícia organização favorável ao livre consumo de álcool. Por obra do dedo-duro de plantão, o carteiro Provisório (Gustaf), Milo é capturado pelos milicos e, como tantos, dado como desaparecido. Uns se acovardam, outros se enchem de brios, numa sucessão de respostas aos desmandos institucionalizados.

Diferentemente do que se possa imaginar, tendo em vista vários longas-metragens que abordam sumiços políticos, A Outra História do Mundo não se sustenta unicamente na ausência de Milo, embora de tal fato decorram as reações dos próximos, como as das filhas Anita (Alfonsina Carrocio) e Beatriz (Natalia Mikeliunas), que suportam a implosão familiar, inclusive após a mãe mudar-se, pois sem esperanças de rever o marido. O sumiço funciona como catalisador, ao redor do qual gravitam exemplos múltiplos de atitudes, que vão da resistência criativa à apatia dos acomodados e amedrontados. Mesmo abordando um tema tão espinhoso como as consequências da arbitrariedade de um regime sanguinolento, o realizador faz questão de ressaltar a capacidade do cidadão comum de afrontar o sistema aparentemente impermeável à sua indignação. Esnal lança mão da inteligência, único recurso possível para combater um comando com muitos ouvidos, reforçado por olhos nativos da comunidade, numa representação dos colaboracionistas que penhoraram suas integridades.

As aulas de História que Esnal ministra no povoado são recheadas de mentiras convenientes, cuja principal função é manter viva a memória do amigo de quem nada se sabe. César Troncoso, em mais um trabalho digno de efusivos elogios, funciona como uma espécie de Sherazade, encantando os alunos, entre eles a esposa do comandante, com enredos rocambolescos que incluem excertos inventados, exatamente para edificar uma prosa épica em torno da linhagem do amigo. O paralelo com a lendária rainha persa, narradora de As Mil e Uma Noites, ocorre porque ambos precisam distrair déspotas e/ou seus representantes diretos, a fim de preservar-se e resguardar os seus. O caráter lúdico ganha força gradativamente, desvelando uma discussão subjacente acerca da construção dos panoramas. Enquanto o coronel Valerio (Néstor Guzzini) possui o pensamento de que a reminiscência do tempo é entendida por meio das batalhas, seguindo a versão dos vencedores, o sujeito que luta, valendo-se de sua posição luminar de mestre, torce os fatos, fazendo caber neles um herói desconhecido, silenciado por quem tem ojeriza de contestações.

Embora algumas resoluções soem um pouco simplistas, como o triunfo em dia de festa, A Outra História do Mundo é um filme sensível sobre opor-se à tirania das ditaduras que marcaram a ferro e fogo a trajetória da América Latina. Enquanto instrumentaliza engenhosamente seus personagens como arquétipos da era nefasta, Guillermo Casanova se vale de um cabedal universal para temperar o enredo, vide até os detalhes supostamente banais, como o vestido de deusa grega da filha de Milo. Utilizando Mosquito como microcosmo de um período conturbado do país portenho, ele mostra, com sutilezas, a força que cada pessoa empreende para combater os impropérios dos que se acham donos do poder. Nesse sentido, os anões são MacGuffins, servindo de gatilhos a determinadas circunstâncias, mesmo sem possuir grande valor. O carisma do elenco, aliado ao roteiro bem estruturado e à boa direção, garante um relato bonito e esperançoso sobre dias tão feios.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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