Crítica
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Sinopse
Escultora que faz parte da elite burguesa do Rio de Janeiro, G.H. decide arrumar a casa na ausência da empregada que pediu demissão na noite anterior. Ao se deparar com uma enorme barata num quarto, ela mergulha num fluxo vertiginoso que expõe a sua subjetividade.
Crítica
Adaptação do famoso livro homônimo de Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. é um filme desconcertante, muito pela maneira como o cineasta Luiz Fernando Carvalho reinterpreta o original: valorizando as palavras, criando imagens que exteriorizam fenômenos subjetivos e fragmentando o discurso da protagonista que devaneia a partir de uma situação banal. O resultado é sinestésico e desafiador. Nele, a escultora G.H. (Maria Fernanda Cândido) mora numa cobertura à beira-mar no Rio de Janeiro nos anos 1960. Narrado em tom confessional, o filme começa com essa abastada intocável nos andares superiores de um prédio burguês anunciando que a sua empregada doméstica, Janair (Samira Nancassa), pediu demissão na noite anterior. Tentando convencer a si mesma, G.H. faz um discurso sobre como adora arrumação, dizendo que não é um fardo ajeitar os cômodos da casa sem a subalterna negra. Caso fosse encarada com senso se realismo, a situação facilmente poderia ser vista como evidência da luta de classes, inclusive porque a patroa supõe encontrar sujeira e insalubridade no quatro da ex-funcionária – um imaginário classista. Para sua surpresa, ela se depara com um aposento organizado e ornamentado com o desenho, semelhante às pinturas rupestres, de uma mulher, um homem e um cachorro. Uma família. Por mais que a invisibilidade negra não seja elaborada, ela está ali.
No entanto, A Paixão Segundo G.H. não é um filme propício para encontrar respostas e nem sempre ideal para formular perguntas diretas. Reproduzindo a estrutura do fluxo de pensamento característico do romance, Luiz Fernando Carvalho radicaliza com um mergulho vertiginoso na subjetividade em processo de estilhaçamento da protagonista em crise. O realizador costura as elucubrações dessa mulher que expressa angústias enraizadas em tom de poesia, num ritmo verbal incessante que em diversos momentos provoca desorientação. A fotografia assinada por Paulo Mancini e Mikeas é fundamental para a impressão de pesadelo íntimo que vai tomando conta do filme, sobretudo a julgar pela estilização dos close-ups que consagram o rosto de Maria Fernanda Cândido quase sempre ao primeiríssimo plano. Por sua vez, a atriz declama monólogos que evocam os fenômenos internos, tais como sentimentos, hesitações, frustrações e dúvidas profundas surgidas de circunstâncias nem sempre ortodoxas, como ela diante da barata. G.H. encontra no quarto da ex-empregada o animal e passa a divagar sobre aspectos existenciais depois de machucá-la. Ao espectador restam duas opções: se deixar levar pelo curso torrencial de imagens, sons, canções e palavras líricas ou sucumbir ao cansaço provocado pela repetição de procedimentos – aqui, um efeito-colateral dessa valente adaptação que reverencia a sua raiz.
Ao optar pela verborragia como uma das expressões principais de A Paixão Segundo G.H., Luiz Fernando Carvalho poderia ter subordinado as imagens às palavras. No entanto, o que evita essa hierarquização é a habilidade na construção do aspecto imagético do filme, o contrapeso eficiente de enxergar G.H. como um espectro em constante construção e desconstrução, não apenas a ouvindo relatar esse processo. Maria Fernanda Cândido se entrega visceralmente a uma personagem predominantemente fracionada pela câmera, em poucos momentos vista de corpo inteiro. Aliás, é como se o dispositivo estivesse tentando aproximar as peças de um quebra-cabeça ao encarar a personagem e seu ambiente tão desmembrados. Não sem razão, alguns espectadores acusarão o antes mencionado cansaço, até mesmo porque a radicalização (quase uma experimentação audiovisual que hibridiza literatura e cinema) cobra o preço de, ocasionalmente, nos fazer sentir como se estivéssemos andando em círculos. Realmente, há a negação de uma progressão dramática tradicional e, por conseguinte, o estranhamento. Estamos tão acostumados a histórias avançando de certas maneiras que é natural resistir diante de algo que proponha alternativas narrativas. Como um artista sempre inquieto, Luiz Fernando Carvalho opta pelo caminho da investigação, se embrenhando em áreas pantanosas para encontrar algo.
Definitivamente, A Paixão Segundo G.H. não é um filme fácil. No entanto, ele oferece uma recompensa singular a quem se mantiver atento aos resultados do redemoinho interior exteriorizado formalmente. G.H. ora parece a protagonista de A Voz Humana, de Jean Cocteau – embora a “filha” de Clarice e Luiz Fernando não espere tanto vindo do exterior –, ora se assemelha às mulheres torturadas nas obras dos cineastas escandinavos Ingmar Bergman e Carl Theodor Dreyer. Luiz Fernando Carvalho, reconhecido por ter extraído das páginas escritas por Raduam Nassar o belíssimo Lavoura Arcaica (2001), que muitos consideravam infilmável, renova a sua paixão pela interseção entre literatura e cinema, esforçando-se para valorizar os aspectos essenciais de ambos os meios de expressão. Para tanto, o realizador trata imagens e palavras igualmente: as desgastando para seus significados imediatos se tornarem difusos. Com isso, o que ouvimos e vemos carrega as impermanências de uma mulher devaneando sobre a condição humana depois de ter golpeado uma barata que passa a verter o líquido vital esbranquiçado. De monólogo em monólogo, Maria Fernanda Cândido faz de G.H. não propriamente uma personagem no sentido dramático mais tradicional, representando a criatura de Clarice Lispector uma como personificação de angústias femininas nesse longa-metragem instigante e desafiador.
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