Crítica


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Sinopse

Um soldado italiano segue para a frente soviética em 1941. Embora a sensação de que a Segunda Guerra está acabando seja bastante reconfortante, o desejo mais sincero dos fardados passa a ser voltar para casa.

Crítica

A exemplo do que fizeram Marcelo Gomes e Karim Aïnouz em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), os cineastas Federico Ferrone e Michele Manzolini criam um personagem ficcional (que igualmente nunca aparece) contra um pano de fundo de imagens documentais em A Passagem. Romano Ismail (voz do cantor Emidio Clementi) é um italiano convocado à Ucrânia pelo exército de seu país que então colaborava com a Alemanha nazista. Especialmente requisitado por falar russo, inicia um trajeto particular e íntimo nesse deslocamento feito por terras arrasadas, geografias severamente modificadas pela guerra e paisagens humanas também depauperadas pelo conflito que adquire tons cíclicos, vide a forma como é espelhado na atualidade. Aliás, o filme exibe em instantes-chave várias pontes com a nossa contemporaneidade, mostrando locais vistos em registros com 80 anos e seus equivalentes atuais, gerando um choque. Numa dessas fricções, o soldado divaga enquanto vemos bois caracterizando a estrada, tanto nos anos da Segunda Guerra quanto no agora.

O mergulho interno de Romano é orientado por sua experiência pregressa de embate na África. Ele menciona que vê apenas combatentes bem mais jovens, cujas esperanças prevê gradativamente asfixiadas pela realidade do front. A Passagem constrói sua predominante nota melancólica menos sobre as constatações do protagonista, mais em cima exatamente da relação cuidadosa entre o cansado tom da voz e as imagens escolhidas para ilustra-lo. As reminiscências maternas do militar trazem outras texturas, como que borrões prestes a evanescerem diante da frequência com que os episódios de brutalidade se impõem. Na medida em que o filme avança, mantendo-se fiel a essa interlocução entre ficção e documentário – com direito a inserção da fábula como mediadora –, o longa-metragem vai se configurando como um exemplar de estrada muito peculiar, até nisso sendo passível de aproximação com o citado filme brasileiro que, de modo semelhante, propõe esse diálogo fértil, mas em meio ao deslocamento do personagem em busca de curar feridas de amor.

Porém, se há um ponto fraco em A Passagem é a orquestração ilustrativa de parte das imagens. Ao invés de gerar um diálogo menos óbvio, quiçá complementar, entre o dito e o mostrado, Federico Ferrone e Michele Manzolini fazem questão de garantir o encaixe evidente das dimensões. Em vários momentos, Romano apenas descreve o que os arquivos apresentam, por exemplo, ao citar que em determinado ponto da ferrovia os soldados pararam para receber as suas devidas rações. O trecho escolhido para servir de pano de fundo imagético a esse dizer extenuado é justamente os soldados em certo trajeto da ferrovia sendo servidos de suas rações. Os realizadores perdem, assim, oportunidades valiosas para tornar o resgate visual verídico (e também as eventuais “contaminações” de tomadas atuais, com formas e densidades distintas) um elemento para além de apêndice do ficcional. Novamente, na irresistível comparação com Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, o filme perde pontos exatamente por, ao contrário do brasileiro, conjugar pouco e demonstrar bastante.

Contrariando esse caráter quase didático na aproximação entre imagens de arquivo e a narração do personagem, A Passagem evite mastigar o entendimento dos diretores – sinalizado no letreiro inicial – sobre “guerras” que na atualidade seguem corroendo a Europa. Esse presente surge com aspecto diferente (sai a tela quadrada e entra a retangular, num artifício simples, porém funcional), temperando ocasionalmente a construção da trama que incorpora o dado sentimental/amoroso, vide as reminiscências da esposa que entrecortam frequentemente a reflexão humana em tempos de guerra. A hostilidade dos povos dominados, a falta de propósito dos sujeitos que lutam sob ordens dos arbitrários senhores da guerra, a ausência de perspectiva que leva homens a pensar em trair convicções em prol da sobrevivência, tudo está contemplado nesse filme enxuto e engenhoso. Fossem mais ousados ao fundir ficção e recorte, não tão preocupados justamente com esse encaixe num nível evidente, os cineastas poderiam ter alcançado notas ainda maiores.

 

Filme visto online na 8 ½ Festa do Cinema Italiano, em setembro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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