Crítica
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Sinopse
Filha mais nova do Rei Tritão, Ariel é uma jovem sereia com sede de aventura. Ao visitar a superfície e contrariar a regra de não interagir com humanos, ela se apaixona por um príncipe. Dividida entre a vida no fundo do mar e a possibilidade de experimentar uma paixão na superfície, por fim ela aceita fazer um perigoso pacto com a bruxa.
Crítica
Após o acerto absurdo – e inesperado, se levar em conta o impacto provocado – que foi o Alice no País das Maravilhas (2010) dirigido por Tim Burton, os Estúdios Disney perceberam ter uma (nova) mina de ouro nas mãos: a possibilidade de refilmar praticamente todo o seu (imenso) acervo de longas-metragens de animação em versão live action, ou seja, com cenários e atores reais. Tal tendência, se é que assim pode ser considerada, teve alguns acertos – como Mogli: O Menino Lobo (2016), de Jon Favreau, ou Aladdin (2019), de Guy Ritchie – mas a grande maioria dos casos se mostraram frustrantes (A Bela e a Fera, 2017, de Bill Condon), redundantes (Cinderela, 2015, de Kenneth Branagh), ou apenas desnecessários (O Rei Leão, 2019, também de Jon Favreau, que na verdade entregou outra animação, só que dessa vez digital, e não mais artesanal). A Pequena Sereia, sob comando de Rob Marshall (cineasta com origem na Broadway e especializado em musicais, tendo dirigido, entre outros, o oscarizado Chicago, 2002), se não assume a liderança desse ranking improvisado, também está longe de ser uma decepção. E muito disso vem pela disposição dos realizadores em não apenas transpor a trama para um outro formato, mas também adaptá-la, ciente de que não apenas a tecnologia, mas também sua audiência – e o entendimento dessa – são outras. Um detalhe que muitas vezes não chega a ser levado em consideração, mas que aqui faz uma diferença enorme.
A principal mudança, e também a mais óbvia, foi a natureza étnica da protagonista. Saiu a menina de pele alva e cabelos ruivos do desenho animado e ganha os holofotes agora Halle Bailey, uma jovem negra mais conhecida pelo seu trabalho como cantora, enquanto que como atriz seu único desempenho de destaque até então havia sido a série Grow-ish (2018-2023). A opção não é mera questão de representatividade social, mas está bem incorporada ao roteiro. Abandona-se a Dinamarca fria e distante de Hans Christian Andersen (autor do conto original e de outras fábulas igualmente famosas, como A Rainha da Neve – que deu origem à Frozen: Uma Aventura Congelante, 2013 – O Patinho Feio, Os Sapatinhos Vermelhos, O Soldadinho de Chumbo, A Pequena Vendedora de Fósforos e tantas outras) e transpõe-se a ação para o caribe latino-americano, região de sabido – e intenso – tráfego marítimo entre os séculos XV e XVIII, período pelo qual essa história provavelmente deve se passar (com ênfase no “talvez”, uma vez que tal afirmação não é especificada em cena). Assim, faz sentido uma sereia de pele morena e cabelos trançados – afinal, cada uma das filhas de Tritão, o rei dos mares, tem como origem um dos sete mares – o mesmo se estende por demais personagens, como a rainha da ilha (Noma Dumezweni, de O Retorno de Mary Poppins, 2018) ou mesmo o sotaque carregado do crustáceo Sebastião (voz de Daveed Diggs).
Porém, para cada acerto, um deslize. Percebe-se um certo receio de dar a essa releitura uma conotação majoritariamente afrodescendente (algo que até a Marvel já fez com os seus super-heróis). Afinal, se este foi o caminho escolhido, por qual razão o príncipe Eric não possui aparência semelhante a de quase todos ao seu redor? Pelo contrário, o escolhido foi Jonah Hauer-King (A Caminho de Casa, 2019), um rapaz caucasiano, esteticamente atraente, mas pálido diante da profusão de cores e emoções que tomam a tela. Por outro lado, há lógica na decisão de fazer dele um órfão que foi adotado – ou seja, é também, em sua essência, um estrangeiro. E eis a verdadeira natureza dessa nova A Pequena Sereia: não se trata apenas do amor impossível entre o ser místico que habita as profundezas do oceano e o jovem que por toda a sua vida foi ensinado a temer e atacar o que lhe é diferente. O que se tem é uma parábola moral cujo enredo se concentra na xenofobia, na reflexão quanto ao desconhecido e na compreensão de que aquele que a este não é igual não precisa ser, necessariamente, uma ameaça. Humanos e marinhos, homens e mulheres, e até mesmo peixes e polvos – como na complicada relação entre os irmãos Tritão (Javier Bardem, com a autoridade necessária) e Úrsula (Melissa McCarthy, que nasceu para esse papel, indo do trágico ao deslumbre, do exagero ou sussurro com grande habilidade) – serão colocados em situações novas, e partir dessas perspectivas é que suas realidades poderão ser alteradas (e melhoradas, enfim).
Muito se problematizou ao longo dos anos quanto à animação A Pequena Sereia (1989) ter no cerne dos seus acontecimentos a exigência da figura feminina abdicar de sua voz para ter alguma chance de se colocar ao lado daquele pelo qual está apaixonada. A exigência da bruxa Úrsula para, em troca, lhe conceder as pernas que permitirão deixar os mares e por terra se aproximar de quem tanto ama, fala muito sobre uma alardeada competitividade feminina (fruto de escritores e roteiristas masculinos, invariavelmente) como também dessa manifestação sonora como reflexo de um anseio por igualdade, se fazer ouvir, reconhecer direitos e perceber vontades (algo que a ela seria negado, portanto). Rob Marshall não deixa de enfrentar o mesmo dilema, acrescentando uma nova camada: Ariel (Bailey, charmosa na medida certa, e com uma voz perfeita para musicais) perde também a memória que remete ao seu pedido. O sentido de urgência, portanto – ela tem apenas três dias para receber um beijo de verdade do amado e, com isso, ter seu desejo realizado, caso contrário se tornará prisioneira da feiticeira – recairá sobre os coadjuvantes cômicos: Sebastião, o sábio siri, Linguado (Jacob Tremblay), o peixe que é também seu melhor amigo, e Sabidão (Awkwafina), uma gaivota atrapalhada.
Se o longa animado tinha menos de 90 minutos de duração, o novo A Pequena Sereia se estende por mais de duas horas, porém sem inserções drásticas: as adições estão mais na trilha sonora e, consequentemente, nos números musicais, a maioria integrado ao conjunto. Os destaques, no entanto, seguem sendo as duas originais – Under the Sea e Kiss The Girl, ambas indicadas ao Oscar em 1990 (a primeira ganhou, aliás) – que não apenas retornam, mas enriquecidas e reinventadas. E entre o nítido deleite de McCarthy em fazer de sua Úrsula um tipo tão marcante quanto a icônica Divine (drag queen conhecida pelos filmes de John Waters, falecida em 1988 e que teria servido de inspiração para sua criação) e uma mudança de discurso que, por mais sutil que se apresente, já aponta para uma direção digna de reconhecimento, Rob Marshall consegue o feito de entregar uma experiência rica aos sentidos, mas também ao debate. Sem esquecer, é claro, de generosas doses de entretenimento. Parece pouco, mas pelo contexto em que se insere, o esforço e os resultados alcançados são, no mínimo, impressionantes.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Robledo Milani | 7 |
Alysson Oliveira | 4 |
Ticiano Osorio | 4 |
Suzana Uchôa Itiberê | 5 |
Arthur Gadelha | 5 |
Chico Fireman | 4 |
MÉDIA | 4.8 |
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