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Sinopse

A China é um gigante passando por transformações brutais nas últimas décadas. O jornalista Jayme Martins e sua família compreendem o país por vias singulares, relatando suas experiências com o comunismo, a Revolução Cultural de Mao, o massacre da praça da Paz Celestial e as reformas que culminaram numa superpotência.

Crítica

Este documentário parte da constatação de que o imaginário a respeito da China está repleto de desinformação. No Brasil de 2020, marcado por notícias falsas e pelo temor renovado de um comunismo caricatural, o filme se volta a uma família brasileira que conhece bem o país asiático. O jornalista Jayme Martins se mudou para a China em plena Revolução Cultural, e teve as duas filhas brasileiras em solo chinês. Desde então, as percepções deste homem a respeito da política local se transformaram: ele migrou da crença no ateísmo e no materialismo à defesa do comunismo (e depois, do comunismo de mercado), enquanto a esposa jamais se considerou comunista. Para as duas filhas, hoje adultas, a China constitui um local familiar, ainda que não se sintam plenamente inseridas na cultura local. A Ponte de Bambu (2020) pretende investigar de que modo Brasil e China se unem, desmontando uma imagem preconceituosa para refletir sobre o complexo país. A abordagem se revela ao mesmo tempo ambiciosa (pela tentativa de elucidar a complexa história chinesa num documentário de 77 minutos) e despretensiosa (fazendo-o através das conversas com uma única família, sentada em sua casa, apresentando fotografias e lembrando causos do passado).

O roteiro, no entanto, é prejudicado pela dependência extrema da narração. O cineasta Marcelo Machado fornece explicações em excesso a respeito da política e sociedade daquele país, e também das idas e vindas de Jayme pela nação distante. Estas falas se fazem necessárias porque as imagens não conseguem traduzir por conta própria estas movimentações, nem as complexidades que o diretor pretende abordar. Assim, ele assume a responsabilidade de um professor gentil, que narra pau-sa-da-men-te cada intervalo da história dos Martins, de maneira descritiva e simplificada. O discurso busca se comunicar com um público ignorante acerca da China, razão pela qual a argumentação se resume a conceitos básicos. O mérito da clareza se contrapõe, no caso, ao problema da abordagem superficial. Ainda que combata os estereótipos do comunismo, o filme tampouco dá conta de abarcar os períodos violentos, gloriosos ou abusivos dentro daquele país. Fala-se pouco em censura, restrições de liberdade, mudanças de governo, evoluções da política de mercado. O comunismo é compreendido sobretudo enquanto uma ideologia, não uma prática radicalmente diferente em suas aplicações em Cuba, China ou União Soviética, que atravessaram regimes muito distintos.

O ponto de vista é entregue inteiramente aos quatro protagonistas. Por mais generosa que seja a disposição a escutar as falas dos Martins, e por mais interessantes que sejam os relatos de uma família de brasileiros criados entre os chineses, o cineasta jamais investiga a história chinesa por si mesmo. O espectador se torna refém de uma única versão dos fatos, apresentada como a história verdadeira, sem contraposição à fala de outras famílias, de outros chineses, de especialistas, ou de descendentes nascidos no Brasil, por exemplo. Mesmo as divergências entre marido e esposa são atenuadas, provavelmente em decorrência da proximidade amigável do diretor com os protagonistas. Ora, escutar a opinião alheia não equivale a concordar com tudo o que ela tenha é dizer, portanto seria fundamental que o cineasta demarcasse seu próprio ponto de vista, efetuando pesquisas autônomas, captando suas imagens pessoais para além da voz, do corpo e das fotografias da família imigrada. O diretor chega a se incluir enquanto personagem, em off, apenas para concordar com as falas ou para estimular uma resposta desejada. Poucas memórias afetivas surgem neste processo (sobre as amizades, comidas, namoros, preconceitos), visto que os Martins são estimulados a discorrer sobre temas grandes, o que encoraja na família certa responsabilidade e evita respostas espontâneas. Em paralelo, as perguntas contendo julgamentos de valor revelam-se questionáveis: “Você acha que cometeu um erro quando fez essas matérias?”, o diretor pergunta ao jornalista.

O discurso poderia ganhar fôlego no terço final, quando o diretor vai à China para presenciar a realidade descrita pelo amigo. Este seria o momento ideal para adquirir autonomia em relação à opinião de Jayme. Ironicamente, a câmera passa a perguntar aos colegas do brasileiro o que pensam sobre ele, quais recordações têm da passagem do jornalista pelo país. Chega a ser irônico que, diante de um país tão rico, o diretor não pergunte aos chineses sobre a China, e sim sobre o protagonista. Filmagens de uma reunião de estrangeiros, e da filha de Martins no evento de uma empresa chinesa, contribuem a obter um ponto de vista novo sobre a experiência do não-pertencimento. Entretanto, ainda não elucidam as contradições sociais, econômicas e políticas do país. A premissa tão intrinsecamente política resulta num feel good movie indisposto a colocar o dedo em quaisquer feridas da presidência chinesa, ou mesmo do capitalismo ocidental incapaz de enxergar suas próprias contradições. O discurso de aceitação das diferenças, ainda que louvável, não investia o que faz de nossos dois países tão diferentes. De que maneira os governos brasileiros têm lidado com este país, e como as sucessivas presidências chinesas reagem às falas brasileiras? Que possíveis encontros, oposições ou complementações existem entre as línguas, ou os sistemas de ensino? Não se sabe.

Ao menos, A Ponte de Bambu impressiona pela qualidade das fotografias apresentadas ao espectador. As fotos das crianças em fase escolar, sobretudo os registros em preto e branco, trazem uma qualidade de luz, enquadramento e um teor de espontaneidade muito benéficos ao resultado. Mesmo assim, o uso destes materiais pela edição se revela bastante simples. Na maioria dos casos, a imagem efetua pequenos zoom in e zoom out nas fotografias, deslizando sobre um ou outro detalhe específico, em maneira convencionar de sugerir dinamismo a partir dos stills. Teria sido interessante descobrir como os jornais da época relatavam o período descrito pelos Martins. O cineasta fornece aos familiares artigos impressos, mas eles não são lidos, tampouco despertam qualquer comentário por parte do pai, esposa e filhas. Mesmo neste instante, o filme se priva de introduzir algum olhar que não seja aquele diretamente controlado pelos protagonistas. Resta um projeto pouco aprofundado na temática do intercâmbio Brasil-China, porém afetuoso enquanto retrato familiar. O cineasta aparenta folhear o álbum de retratos do colega, enquanto registra com sua própria voz um diário de impressões a respeito da viagem.

Filme visto online no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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