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Sinopse

O marinheiro David luta para oferecer uma vida melhor à sua família. Tudo parece melhorar quando ele se depara com a oportunidade de arrematar um velho barco em leilão. Depois de convencer a esposa de que a embarcação pode ser a solução dos problemas, ele parte com a família numa jornada marítima que logo se revela aterrorizante.

Crítica

Alguns filmes de terror pretendem mostrar que o medo pode surgir de uma situação banal, digna de acontecer com qualquer um – incluindo o espectador. Por isso, dedicam tempo considerável construindo famílias comuns em contextos plausíveis, para então desencadear ameaças. O horror nasce, neste caso, da possibilidade de identificação. Outros filmes de terror, em registro oposto, preferem deixar o espectador alerta de que existe algo errado num contexto antinatural, sinal de que a matança começará a qualquer instante. Trabalha-se com personagens atípicos em situações pouco habituais, fazendo com que paguem por sua excentricidade e/ou ousadia através da ameaça de alguma força natural ou sobrenatural. Aproxima-se, portanto, do conto de natureza moral ou moralista.

A Possessão de Mary faz parte do segundo grupo. O letreiro inicial afirma que uma bruxa voltará para acertar contas com o passado. Quando o pescador David (Gary Oldman) se encanta com um barco velho e quebrado e decide comprá-lo, os colegas relembram histórias sobre o canto da sereia, evocam lendas de navios abandonados em alto mar, cujos donos nunca mais foram vistos. O diretor Michael Goi filma uma dúzia de vezes a sereia assustadora à frente da embarcação, sinal de que a lenda se concretizará em breve. O roteiro não para de nos lembrar, cena após cena, que a viagem de pai, mãe e filhos dará errado. Cabe ao espectador, em posição passiva, esperar a concretização da tragédia anunciada. A montagem, inclusive, inicia a história após a catástrofe, através de uma entrevista com os sobreviventes. Tamanha insistência na mensagem do perigo aumenta a expectativa para o clímax tantas vezes anunciado. É uma pena que a concretização do terror fique muito aquém do espetáculo prometido.

Goi e o diretor Anthony Jaswinski (do muito mais competente Águas Rasas, 2016) recaem num problema típico do terror comercial contemporâneo: somar medos incompatíveis entre si na busca de aumentar a potência da trama. A protagonista maligna se condensa numa figura mista entre sereia, bruxa e demônio. Os criadores nunca conseguem estabelecer se esta entidade seria sobrenatural (ou seja, sem corporeidade específica) ou humanoide. Ora a personagem atravessa as portas do barco maligno, ora deixa pegadas de sangue enquanto caminha. Ora se comporta como uma aparição fluida, ora apresenta dentes afiados. Afinal, em que consiste a vilã do filme, e do que é capaz? O diretor e o roteirista sequer se preocupam em desenvolver esta personagem fundamental, fazendo uso de quaisquer recursos que lhes pareçam apropriados à cena em particular. Esta incoerência resulta na impressão de aleatoriedade.

Ainda mais frágeis são as escolhas de direção. A Possessão de Mary fornece um compilado dos clichês mais gastos do terror comercial pós-1990. As aparições da entidade são limitadas a jump scares simples, com direito à figura jogando-se à tela em direção ao espectador, ou aparecendo furtivamente no escuro, pelos cantos do enquadramento. Os personagens ficam presos em cômodos escuros (a porta se fecha sozinha), a luz se apaga milagrosamente, a maçaneta da porta vira lentamente, pessoas são arrastadas pelo chão, puxadas pelos pés, enquanto encontram cordas prontas para enforcamento. Pense em algum efeito típico do terror-susto, e ele provavelmente fará parte do arsenal de Goi. O produto visa um tipo de sensação e construção imagética tão gastos que chega a surpreender a presença de grandes nomes como Gary Oldman e Emily Mortimer nos papéis principais. Os atores fazem o que podem com seus personagens, ainda que possuam poucos elementos a desenvolver de fato. David e Sarah, casal central desta trama, constitui essencialmente vítimas em potencial para se oferecer ao barco possuído.

Quando a narrativa ameaça fornecer elementos de construção psicológica, o resultado se torna bastante contestável. O aceno à culpabilidade da esposa pela tragédia, em virtude de uma infidelidade no passado, ou à responsabilidade da filha mais velha no ataque do namorado por usar roupas curtas prenunciam um machismo que o filme evita a tempo, embora não o negue por completo. De certo modo, a descrição superficial desta família-mártir nos poupa de males maiores. Goi nunca se revela realmente interessado em questões de lógica – vide a existência de um enorme dossiê histórico dentro do barco, além de alguns acontecimentos inverossímeis na delegacia. Ele se contenta com sensações, atmosfera e sustos, obtidos através da evocação clássica dos elementos esperados do gênero. O medo decorre essencialmente da mulher monstruosa porque não corresponde às regras sociais (a bruxa) e da mulher monstruosa porque seduz os homens até a loucura (a sereia). Existe um sexismo latente, que nunca se desenvolve por completo, no fundo deste projeto.

A Possessão de Mary constitui um filme de terror para quem já viu dezenas de histórias semelhantes, um terror de piscadelas e reconfortos (Está vendo a aparição ali no fundo? Lembra da estátua da sereia de que eles falaram antes?), distante de qualquer pretensão de originalidade, mas igualmente destituído de uma busca pelo refinamento dentro dos cânones do terror sobrenatural – algo que seria mais próximo da saga Invocação do Mal, por exemplo. Parte do público reclama das críticas exigentes sobre filmes de gênero dizendo que se trata “apenas um filme de terror”, uma brincadeira que não se leva a sério. Este tipo de nivelamento por baixo desrespeita não apenas o cinema inovador, político e provocador de tantos diretores de terror ao longo dos tempos (John Carpenter, Dario Argento, George A. Romero etc.), mas também as iniciativas excepcionais de jovens cineastas (Robert Eggers, Ari Aster, Jordan Peele) que exploram muito bem as convenções para discutir os aspectos sombrios da sociedade e da natureza humana. O gênero não possui qualquer vocação para ser “apenas um filme de terror”, a não ser que o façam assim.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
3
Alysson Oliveira
1
MÉDIA
2

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