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Sinopse

Sidonie, uma jovem aeromoça, cria sozinha sua filha de 15 anos, Lolo. Num esforço para satisfazer a crescente curiosidade da garota sobre suas origens, a mãe a leva para sua cidade natal em busca de pais em potencial. Ela pretende roubar um fio de cabelo de cada um dos homens com os quais Sidonie se relacionou para fazer um teste de paternidade.

Crítica

Uma adolescente criada apenas pela mãe manifesta o desejo crescente de descobrir seu pai. A própria mãe o desconhece, por ter se relacionado com homens diferentes durante a juventude. Esta poderia ser a premissa de Mamma Mia! (2008), mas também corresponde à sinopse de A Poucos Passos de Paris (2018) – prova de que o mesmo ponto de partida pode dar origem a filmes radicalmente diferentes. O musical norte-americano privilegiava o espetáculo e a romantização dos amores eternos. Em chave oposta, o drama francês acredita no acaso e nos encontros inconsequentes. Neste caso, há pelo menos cinco pretendentes ao posto de pai de Lolo (Matilda Marty-Giraut). A jovem mãe, Sidonie (Érika Sainte), relembra com afeto de cada namorado da adolescência. Para ela, pouco importa o resultado do exame de DNA: o retorno à cidadezinha natal significa uma possibilidade de reatar com laços do passado. Para a garota, a descoberta do pai constitui uma curiosidade, uma pequena aventura, ao invés da oportunidade de resolver uma lacuna importante em sua vida. As duas partem ao vilarejo de Somme Bay com a perspectiva de um fim de semana despretensioso.

Um mérito notável do projeto se encontra na construção psicológica de Sidonie. Poucas cinematografias pelo mundo seriam capazes de fornecer um retrato tão respeitoso e desprovido de julgamentos morais da protagonista. Érika Sainte efetua uma composição excelente desta mulher que se relacionou com pelo menos seis rapazes distintos quando tinha 16 anos de idade. Sem arrependimentos, a protagonista tampouco ostenta alguma forma de orgulho afrontoso em relação à sua vida amorosa. Para a personagem, a sexualidade constitui um fator natural: ela não se envergonha da gravidez precoce, e tampouco esconde as dúvidas quanto à paternidade. Ao rever os parceiros de 15 anos atrás, faz sexo novamente com alguns deles. Enquanto isso, a filha dorme no quarto ao lado. Seria fácil coincidir Sidonie com a heroína vingativa, ressentida, ou promíscua e afetada por traumas de infância. Ora, esta mãe carinhosa e namorada gentil de um colega de profissão sustenta total autonomia, tanto para criar a filha sem um companheiro fixo, quanto para multiplicar as companhias. Quando Lolo lhe pergunta se dormiu com um dos candidatos a pai, a mãe responde: “Você é a polícia, por acaso”?

Para um roteiro tão propício aos quiproquós cômicos, a diretora Virginie Verrier, em seu primeiro longa-metragem (que infelizmente teve repercussão nula em seu país de origem), impressiona pela abordagem próxima do documentário. A câmera móvel chega a tremer em excesso no início, até se acalmar quando a dupla feminina pega a estrada. O possível passeio turístico cede espaço ao prazer da escapada: os dias são nublados e as paisagens dispensam qualquer atrativo para visitas. A montagem incorpora meia dúzia de sequências filmadas dentro de carros, com a paisagem ao fundo, deslizando em conjunção com alguma trilha sonora diferente (mais próxima do pop para instantes de felicidade, e adepta ao indie folk para a melancolia). Há um componente muito belo na maneira como a cineasta ressignifica paisagens praticamente idênticas através do uso de trilha sonora e do estado de espírito de suas heroínas. O senso de finalidade esperado da busca pelo pai se dilui em digressões contemplativas de mãe e filha, contentes em pegar atalhos ao longo da jornada. “Podemos dirigir até o sol raiar”, explica Sidonie. A viagem se torna um fim em si mesma, o que aproxima este filme dos road movies, ao invés das comédias populares.

A Poucos Passos de Paris cresce a cada novo encontro com os pais em potencial. O ponto de vista se fixa nas mulheres, de modo que os candidatos serão vistos apenas pelo olhar de mãe, filha e da amiga Jeanne (Shirley Bousquet). Nesta aventura íntima, os personagens masculinos se reduzem a projeções ou construções das mulheres: jamais vemos o rosto do pai de Sidonie, que a expulsou de casa na juventude, embora ele esteja dentro da casa onde ela se abriga. Os personagens são avaliados por mãe e filha, como se elas os escolhessem - no fundo, a dupla central prefere eleger um pai simbólico, ao invés de depender de exames genéticos. Fred Testot, no papel do sujeito tímido e ainda apaixonado pela ex-namorada, efetua um trabalho magnífico, todo em silêncios e olhares dúbios. Frédéric Pierrot ironiza a si próprio enquanto sujeito mais velho e delicado, já Thierry Frémont representa a imagem do sujeito desconstruído, sem o sentimento de possessão sobre a mulher amada. O ousado roteiro permite uma ligação tragicômica entre Sidonie e a esposa de um antigo parceiro: a sororidade se torna o verdadeiro motor narrativo diante de figuras masculinas fracas e isoladas.

Neste percurso curto, Verrier opõe a cidade (Paris) ao campo (Somme Bay), a inserção social de homens e de mulheres, e a percepção moral entre duas gerações. A conclusão, um inesperado atalho circular, atesta o talento da cineasta em trabalhar com reviravoltas improváveis por meio do despojamento. Quanto ao título brasileiro, resta compreender a magia que transformou “A Duas Horas de Paris”, no título original, em “A Poucos Passos de Paris”. A ideia inicial consistia em demarcar a distância da cidade grande rumo à “França profunda”, já a tradução brasileira insiste que estamos ao lado da capital, o que não é verdade. O drama foge ao glamour e aos estereótipos. Para a diretora e para Érika Sainte, nada é mais normal do que uma discussão sobre o aborto ao lado da filha, um jantar com o antigo amante e a esposa dele, e a comemoração da morte iminente do pai. O projeto se apropria de temas controversos para representá-los com notável leveza, produzindo humor pela naturalização dos tabus. Sidonie nunca constitui motivo de riso: rimos apenas das rotinas inertes encontradas nesta escapada familiar. O humor possui um fundo de tristeza, assim como o drama carrega uma comicidade discreta.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
8
Alysson Oliveira
4
MÉDIA
6

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