Crítica
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Sinopse
Crítica
Desde as primeiras imagens, o filme apresenta toda a pompa esperada de um grande “filme de época” – dos casarões aos figurinos minuciosamente reconstituídos, dos vilarejos com casinhas de tijolos às paisagens suntuosas do interior da Inglaterra. O diretor Kenneth Branagh não economiza nas cenas em que o poeta William Shakespeare (o próprio Branagh, com uma prótese no nariz) se encontra solitário em meio a majestosos campos floridos, perto de árvores centenárias, ao lado de lagoas pacíficas. A fotografia faz o possível para ressaltar as cores, a nitidez e as texturas, em trabalho tão exagerado que remete aos filtros do Photoshop – nada mais estranho do que transformar uma paisagem real em algo com aparência de cenário digital. Mesmo assim, o cineasta apela para uma construção que estima ao mesmo tempo bela e melancólica no intuito de retratar o final da vida do grande artista. Aos 52 anos de idade, tendo escrito todas as suas peças e perdido o filho pequeno, Shakespeare amarga o duplo luto familiar e profissional.
A Pura Verdade (2018) é um filme no pretérito imperfeito: as ações importantes aconteceram antes de a narrativa começar, cabendo aos personagens sofrerem a consequência de algo que o espectador não acompanha ao vivo. Por isso, temos um projeto sobre a perda dos filhos, a tristeza das peças que não existirão mais, a saudade do teatro que pegou fogo, o receio das filhas difamadas na cidade, o ressentimento da esposa abandonada. O início não é nada convidativo: além das imagens excessivamente embelezadas, o ritmo é lento demais, e tanto os gestos quanto as falas soam posados. As pessoas possuem um caminhar duro, o rosto erguido enquanto proferem frases em inglês antigo. O aspecto poeirento do cinema de época convencional contamina a introdução, sugerindo uma narrativa composta por pessoas solenes lamentando suas próprias sortes em versos. Em outras palavras, a apresentação de personagens adota os moldes de um cinema antiquado. Muitos diretores se perdem na impressão que, para representar a vida de séculos atrás, é preciso resgatar um cinema rígido demais. A visão contemporânea sobre o século XVII às vezes se esquece de que as pessoas riam, brincavam, se divertiam, se provocavam, faziam sexo – da maneira delas, é claro.
Felizmente, o drama melhora muito passados os primeiros vinte minutos. Os cenários decorativos cedem espaço a interiores simplificados, pois iluminados apenas por velas – ou seja, durante a noite, mal se enxergam os detalhes dos móveis. Assim, todo o foco se encontra nos atores, que passam a se digladiar em diálogos repletos de acusações, insinuações e sarcasmos. Branagh pode não possuir muita sutileza na condução das imagens, porém se revela um ótimo diretor de atores, além de transparecer profundo conhecimento sobre Shakespeare. Generoso, o roteiro de Ben Elton oferece pelo menos uma grande cena para que cada ator possa brilhar: William Shakespeare tem sua revanche irônica contra o homem que o difama pela cidade; a esposa Anne Hathaway (Judi Dench) enfim confessa ao marido a dor de ser analfabeta e, portanto, nunca ter lidos as elogiadas obras do marido; a filha Judith (Kathryn Wilder) despeja com ferocidade a raiva contra o pai machista; Earl de Southampton (Ian McKellen) tem direito a uma troca repleta de provocações com o escritor, beirando o homoerotismo, e culminando na impressionante cena em que um rei declama Shakespeare ao próprio Shakespeare.
O elenco eleva a narrativa verborrágica – 90% das cenas consistem em duplas sentadas conversando – a um estudo complexo sobre as hipocrisias humanas. Aos poucos, critica-se as relações de gênero, o machismo da época, a arrogância do escritor, além de todos os segredos e mentiras orquestrados em nome de Deus e das aparências. A Pura Verdade constitui um belo título para uma história marcada por tantos segredos espetaculares e revelações inesperadas que mal parece retirada da vida real do escritor inglês. “All Is True”, título original, faz referência a uma das peças de Shakespeare, porém entra em contraste com o verso “Nada é verdade”, escrito por ele mesmo em mais de uma obra. A narrativa começa a demonstrar um olhar crítico, um interesse genuíno pelo poder da palavra (seja ela dentro da arte, seja nas palavras proferidas por alguém para magoar ou seduzir), um olhar metalinguístico a respeito das ficções que as pessoas criam para si mesmas, e para o olhar dos outros. O filme pomposo do início se transforma em encontros repletos de por parte de personagens bem construídos.
Mesmo a direção, com todos seus revezes, revela-se coesa. O cineasta efetua escolhas curiosas de enquadramento, iluminação e profundidade de campo: para uma cena dramática, quando uma gravidez e uma morte são anunciadas ao mesmo tempo, ele opta pelo grande plano geral, ou seja, com tamanha distância que sequer vemos o rosto dos atores. Em outro momento, as folhas alaranjadas do outono caem em câmera lenta ao som de pianos, numa combinação cafona. No entanto, o personagem que caminha sob as folhas é visto de costas. Existe uma tentativa desajeitada de equilibrar razão e sentimento, com alguns estranhos planos em contra-plongée dentro dos cômodos, com uma objetiva grande angular que lembra uma versão tímida da estilização de A Favorita (2018). A versão fantasmagórica do filho morto também soa pouco delicada. No entanto, Branagh eleva a qualidade de sua atuação a cena, McKellen encontra pausas improváveis dentro de suas falas, Dench controla a tradicional força dos gestos para compor uma esposa tímida. Ao fim, o diretor oferece deliciosas oportunidades de jogo cênico, além de uma visão crítica de um autor tão consagrado. O filme pode resultar arrastado demais para as plateias contemporâneas, porém resgata uma possibilidade de contemplação pertinente à época escolhida.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 7 |
Robledo Milani | 6 |
Francisco Carbone | 5 |
Chico Fireman | 7 |
MÉDIA | 6.3 |
Acabei de ver. O filme é maravilhoso: cenografia, figurino, maquiagem, fotografia, roteiro, atuações, trilha sonora, edição. traz alguma paz à alma saber que aínda existe alguém que zela pela arte como Branaghan. O filme é quase que teatro filmado (bem ao estilo do diretor) e narrativa evolui para uma trama "investigativa". Muito bom.
Estou vendo o filme. Me encanta. Me sugere tanto mais... Tem magia. A.iluminação me atrai, sim, quadro à quadro. Para mim ficará na lista dos "amados".
Gostei muito do filme e daria 4 estrelas completas para ele.
Bela crítica, à qual concordo e parabenizo o autor. Disse exatamente tudo a dizer sobre este filme polêmico!
Não concordo com sua crítica. Precisamos conhecer muito da obra do bardo para realmente apreciar o filme, algo que acho que não conheces pela falta de análise das falas da obra. Branagah fez um hino de louvor ao seu amor por Shakespeare, compartilhado com prazer por aqueles que o amam e conhecem seus poemas e suas peças.