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Crítica


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7 votos 8.6

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Sinopse

Atormentado pela morte de seu único filho, o dramaturgo William Shakespeare luta para consertar relações desfeitas com a esposa e filhas. E por isso se vê forçado a analisar suas falhas como marido e pai.

Crítica

Desde as primeiras imagens, o filme apresenta toda a pompa esperada de um grande “filme de época” – dos casarões aos figurinos minuciosamente reconstituídos, dos vilarejos com casinhas de tijolos às paisagens suntuosas do interior da Inglaterra. O diretor Kenneth Branagh não economiza nas cenas em que o poeta William Shakespeare (o próprio Branagh, com uma prótese no nariz) se encontra solitário em meio a majestosos campos floridos, perto de árvores centenárias, ao lado de lagoas pacíficas. A fotografia faz o possível para ressaltar as cores, a nitidez e as texturas, em trabalho tão exagerado que remete aos filtros do Photoshop – nada mais estranho do que transformar uma paisagem real em algo com aparência de cenário digital. Mesmo assim, o cineasta apela para uma construção que estima ao mesmo tempo bela e melancólica no intuito de retratar o final da vida do grande artista. Aos 52 anos de idade, tendo escrito todas as suas peças e perdido o filho pequeno, Shakespeare amarga o duplo luto familiar e profissional.

A Pura Verdade (2018) é um filme no pretérito imperfeito: as ações importantes aconteceram antes de a narrativa começar, cabendo aos personagens sofrerem a consequência de algo que o espectador não acompanha ao vivo. Por isso, temos um projeto sobre a perda dos filhos, a tristeza das peças que não existirão mais, a saudade do teatro que pegou fogo, o receio das filhas difamadas na cidade, o ressentimento da esposa abandonada. O início não é nada convidativo: além das imagens excessivamente embelezadas, o ritmo é lento demais, e tanto os gestos quanto as falas soam posados. As pessoas possuem um caminhar duro, o rosto erguido enquanto proferem frases em inglês antigo. O aspecto poeirento do cinema de época convencional contamina a introdução, sugerindo uma narrativa composta por pessoas solenes lamentando suas próprias sortes em versos. Em outras palavras, a apresentação de personagens adota os moldes de um cinema antiquado. Muitos diretores se perdem na impressão que, para representar a vida de séculos atrás, é preciso resgatar um cinema rígido demais. A visão contemporânea sobre o século XVII às vezes se esquece de que as pessoas riam, brincavam, se divertiam, se provocavam, faziam sexo – da maneira delas, é claro.

Felizmente, o drama melhora muito passados os primeiros vinte minutos. Os cenários decorativos cedem espaço a interiores simplificados, pois iluminados apenas por velas – ou seja, durante a noite, mal se enxergam os detalhes dos móveis. Assim, todo o foco se encontra nos atores, que passam a se digladiar em diálogos repletos de acusações, insinuações e sarcasmos. Branagh pode não possuir muita sutileza na condução das imagens, porém se revela um ótimo diretor de atores, além de transparecer profundo conhecimento sobre Shakespeare. Generoso, o roteiro de Ben Elton oferece pelo menos uma grande cena para que cada ator possa brilhar: William Shakespeare tem sua revanche irônica contra o homem que o difama pela cidade; a esposa Anne Hathaway (Judi Dench) enfim confessa ao marido a dor de ser analfabeta e, portanto, nunca ter lidos as elogiadas obras do marido; a filha Judith (Kathryn Wilder) despeja com ferocidade a raiva contra o pai machista; Earl de Southampton (Ian McKellen) tem direito a uma troca repleta de provocações com o escritor, beirando o homoerotismo, e culminando na impressionante cena em que um rei declama Shakespeare ao próprio Shakespeare.

O elenco eleva a narrativa verborrágica – 90% das cenas consistem em duplas sentadas conversando – a um estudo complexo sobre as hipocrisias humanas. Aos poucos, critica-se as relações de gênero, o machismo da época, a arrogância do escritor, além de todos os segredos e mentiras orquestrados em nome de Deus e das aparências. A Pura Verdade constitui um belo título para uma história marcada por tantos segredos espetaculares e revelações inesperadas que mal parece retirada da vida real do escritor inglês. “All Is True”, título original, faz referência a uma das peças de Shakespeare, porém entra em contraste com o verso “Nada é verdade”, escrito por ele mesmo em mais de uma obra. A narrativa começa a demonstrar um olhar crítico, um interesse genuíno pelo poder da palavra (seja ela dentro da arte, seja nas palavras proferidas por alguém para magoar ou seduzir), um olhar metalinguístico a respeito das ficções que as pessoas criam para si mesmas, e para o olhar dos outros. O filme pomposo do início se transforma em encontros repletos de por parte de personagens bem construídos.

Mesmo a direção, com todos seus revezes, revela-se coesa. O cineasta efetua escolhas curiosas de enquadramento, iluminação e profundidade de campo: para uma cena dramática, quando uma gravidez e uma morte são anunciadas ao mesmo tempo, ele opta pelo grande plano geral, ou seja, com tamanha distância que sequer vemos o rosto dos atores. Em outro momento, as folhas alaranjadas do outono caem em câmera lenta ao som de pianos, numa combinação cafona. No entanto, o personagem  que caminha sob as folhas é visto de costas. Existe uma tentativa desajeitada de equilibrar razão e sentimento, com alguns estranhos planos em contra-plongée dentro dos cômodos, com uma objetiva grande angular que lembra uma versão tímida da estilização de A Favorita (2018). A versão fantasmagórica do filho morto também soa pouco delicada. No entanto, Branagh eleva a qualidade de sua atuação a cena, McKellen encontra pausas improváveis dentro de suas falas, Dench controla a tradicional força dos gestos para compor uma esposa tímida. Ao fim, o diretor oferece deliciosas oportunidades de jogo cênico, além de uma visão crítica de um autor tão consagrado. O filme pode resultar arrastado demais para as plateias contemporâneas, porém resgata uma possibilidade de contemplação pertinente à época escolhida.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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