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Crítica


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Sinopse

Já na sua batalha inicial na Primeira Guerra Mundial, um jovem soldado ávido por episódios glorificantes acaba perdendo a visão. Sua missão passa a ser a identificação de aeronaves inimigas com objetos acústicos enormes.

Crítica

Desde as primeiras cenas, o filme russo alterna entre o presente e o passado, entre a linguagem clássica e a contemporânea. Quando registra uma orquestra nos tempos atuais, o diretor Alexander Zolotukhin utiliza a imagem digital perfeitamente nítida, em estilo próximo ao documentário de observação. Quando se volta à narrativa da Primeira Guerra Mundial, que ocupa a maior parte da trama, aposta num recurso muito mais estilizado: o filme adota a película 16mm e, por consequência, a janela 1:1.66. Assim, fornece uma profunda granulação que remete não apenas ao mundo de cem anos atrás, mas também ao cinema do século passado. As ranhuras e sujeiras da imagem são amplificadas, constituindo uma linguagem narrativa em si. Deste modo, a dificuldade de enxergar personagens em determinadas cenas devido à luz estourada e à confusão sonora constitui uma representação das sensações do jovem Alexey (Vladimir Korolev). O projeto evita determinar o ano da batalha, o local exato onde o batalhão se encontra, as estratégias do batalhão russo contra os alemães. Este é um filme de guerra onde a guerra importa pouco: a partir do momento em que o garoto perde a vista em decorrência de um ataque inimigo, ele é afastado da zona de combate, e a câmera parte com ele.

A Russian Youth (2019) oferece uma experiência única, primeiramente por retirar da guerra seu aspecto espetacular. Ignoramos as hierarquias e as características pessoais de cada soldado. A cegueira de Alexey é apresentada por um simples corte de montagem, com a mesma indiferença das sequências de bombardeios. Diante do cenário mais consequente possível (a guerra, a luta de vida ou morte), o cineasta opta por uma linguagem de inconsequência. Não há qualquer forma de tensão, de preparação à cena seguinte, nem mesmo de psicologismo: Alexey não tem oportunidade para demonstrar seu sofrimento. Ele precisa lidar com a perda da visão em pleno campo de batalha, sem poder ficar a sós, refletindo. O garoto jamais efetua o luto da vista perdida porque o contexto não o permite. Esta escolha produz um efeito de frieza, como se o diretor jamais se importasse com esses personagens anônimos, filmando-os em grupos limitados à imagem de corpos em deslocamento. Este seria, no sentido estrito da palavra, um filme de ação, ao invés de um drama: Alexey anda, se desequilibra, sente dores. Ao lado dele, a guerra continua como se ninguém sequer percebesse a existência do jovem.

Muitos projetos de guerra se concentram em pessoas especiais e/ou momentos especiais – seja o soldado mais corajoso, o inimigo mais violento, o dia em que o confronto explode ou o instante em que termina. Aqui, a guerra se torna um dia como os outros, por meio de um anti-herói que interessa à câmera, mas não ao seu entorno. Entretanto, a impressão de desprezo por Alexey e os outros soldados se dissipa quando Zolotukhin passa a introduzir pequenos momentos de amizade ou cuidado entre os homens. O jovem precisa de ajuda para se locomover, para comer e se vestir, quando outros se mostram solidários ao protagonista. O filme de duração enxuta encontra espaço para revelar a brincadeira de dois soldados no chão – o mais velho tentando desvestir Alexey para o banho -, e um homem maduro retirando carrapatos do garoto, além do instante em que este cola o ouvido a um grande equipamento metálico de escuta e ouve os barulhos ao mesmo tempo belos (pelos pássaros, pelo vento) e assustadores (pela possível chegada de aviões inimigos). As imagens transbordam de poesia registrada em belíssimas composições de grupos. Dentro de um escopo histórico tão amplo, o diretor presta atenção particular às mãos, seja aquelas que carregam armas ou as mãos que oferecem ajuda e abraçam os colegas.

As mãos também constituem a ponte necessária entre a guerra do início do século XX e a orquestra do século XXI, que interpreta composições de Rachmaninoff datando da Primeira Guerra Mundial. A montagem combina as mãos sujas e brutas da guerra com aquelas que tocam freneticamente um piano, dentro da estética elegante e polida da música clássica. Os olhos de Alexey, marcados por queimaduras, são comparados aos olhos arregalados do pianista possuído, apresentando-se com uma entrega feroz. A Russian Youth traz a curiosa sensação de nos oferecer a projeção de um filme antigo com orquestra ao vivo: enquanto a imagem riscada e granulada, com bordas escurecidas ou desfocadas, remete ao cinema mudo, a música da orquestra, em volume muito mais alto do que os diálogos e ruídos, reproduz a intromissão num material distinto. Em paralelo, a edição articula o som diegético (o protagonista toca um acordeom dentro da trama) com o som extradiegético (a trilha em outra banda sonora), porque presenciamos a execução dos músicos enquanto a história se desenrola. O recurso provoca estranhamento por romper a imersão do espectador na trama e reforçar o caráter fictício da mesma.

Desta maneira, o cineasta fornece ao mesmo tempo o filme e seu making of, a ficção e o documentário, a “magia” do cinema – entendida como recriação do mundo de cem anos atrás – e a desconstrução dessa magia. A trilha sonora, especialmente nos filmes de guerra, costuma manipular emoções e ditar sensações. Aqui, ela perde seu caráter intrusivo ao se revelar enquanto tal: testemunhamos os músicos assistindo às cenas do filme e esperando o segundo exato para começarem a tocar. O projeto discorre não apenas sobre o humanismo em tempos de guerra, mas também sobre o cinema enquanto construção e orquestração de linguagem. Ao mesmo tempo, as cores profundas e meio borradas (decorrentes da baixa nitidez) provocam certa atmosfera de sonho, ainda mais curiosa por se tratar do gênero de guerra, tão preocupado com o realismo. Os verdes profundos da natureza em conjunção com os corpos e uniformes beges, sob uma luz estourada e extremamente granulada provocam a sensação de uma pintura, como um quadro expressionista. É possível que muitas das modificações de luz e cor sejam produzidas na pós-produção, de maneira artificial, porém servem como articulação entre o formato 16mm e os recursos digitais da pós-produção atual.

Por fim, A Russian Youth opta por sucessivos processos de construção e desconstrução: apesar de apresentar cenários, figurinos e acessórios verossímeis para a época em questão, privilegia a estética e as cenas que beiram a fantasia, ou então a fábula sobre este Ícaro belicoso que queima suas asas ao voar alto demais. Ao invés dos discursos patriotas e cenas de liderança, Zolotukhin prefere mostrar o gigantesco aparelho sonoro com aparência de ficção científica, o improvável acordeom em meio às bombas, a primeira vez em que o garoto cego se levanta e caminha sobre os corpos dos colegas dormindo. Chega a ser um alívio ao crítico de cinema discutir sensações, o uso das mãos num filme de guerra, a articulação particular entre som e imagem. Diante de tantos projetos estreando diariamente em streaming, com linguagem precária e produção descuidada, perde-se muito tempo apontando o óbvio, o que não deixa oportunidade de aprofundamento em simbologias e demais aspectos que vão além da superfície. É com grande prazer que se encontra um diretor tão jovem, em seu primeiro filme, demonstrando domínio da câmera, do enquadramento, da luz, do som, da direção de atores, além do discurso que pretende transmitir através de sua forma. O refinamento é tão evidente que se pode debater, então, as consequências desta forma, ao invés de se ater à constatação da qualidade ou falta da mesma. Experiências desconcertantes como esta correspondem ao que o cinema pode trazer de melhor ao espectador e ao crítico.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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