Crítica


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Sinopse

Raffaella é uma mulher peruana vivendo ilegalmente nos Estados Unidos com os dois filhos. Enquanto a mãe se apaixona por um escritor, os garotos descobrem o amor por uma jovem prostituta. Quando os filhos desaparecem por Nova York, a mãe parte em busca de respostas.

Crítica

Os Estados Unidos representam um lugar horrível de se viver em A Santa do Impossível (2020). Todos os homens adultos são perversos, sem exceção: os professores de inglês riem das histórias de guerra e das mortes de seus alunos, os patrões assediam moralmente os funcionários estrangeiros, os namorados exploram economicamente as namoradas, os empresários queimam prostitutas com bitucas de cigarro. As mulheres, em contrapartida, constituem vítimas exploradas e sofridas, apesar de batalhadoras. Elas sofrem nas mãos destas figuras masculinas asquerosas, trocando de parceiros noite após noite em busca de algum relacionamento verdadeiro – em outras palavras, elas demais deixam de ser sonhadoras. Em meio a este cenário desolador, os adolescentes Paul (Adriano Durand) e Tito (Marcelo Durand) crescem com um sorriso permanente no rosto e a vontade de conhecer o grande amor. Eles se sentem “invisíveis” em meio à sociedade, em suas próprias palavras, porém demonstram inesperada satisfação com suas condições de vida. Do início ao fim, toleram sem surpresas provações extremas. Além disso, são indistintos: andam juntos, falam juntos, efetuam todas as ações em dupla. Masturbam-se juntos e fazem sexo observando um ao outro.

A produção suíça não prima pelo realismo. Partindo do livro original de Arnon Grunberg, o diretor Marc Raymond Wilkins procura alertar sobre a exploração do trabalhador, a desigualdade de renda, a rotina sofrida dos estrangeiros em Nova York. Ele estima que o discurso se tornará mais potente caso transforme a mensagem política numa fábula maniqueísta. É possível que se mire, por meio desta narrativa, numa mensagem universal de resiliência face às adversidades. No entanto, a denúncia se torna conformista, conforme se percebe pela estética multicolorida, a trilha sonora indie e a ambientação geral de feel good movie. A pequena crônica sobre a puberdade de dois garotos é colada a uma construção social fatalista e estereotipada. Em consequência, as duas personagens femininas centrais correspondem à dualidade santa-prostituta: elas são ao mesmo tempo puras de coração e vorazes na cama, deitando-se com qualquer um e literalmente vivendo na sujeira (vide o apartamento repleto de vermes da mãe, e o hotel coberto de baratas onde a prostituta atende dois clientes). Em paralelo, os meninos possuem um Complexo de Édipo mal resolvido pelo roteiro: eles assistem à mãe fazer sexo com frequência, escutam os gemidos e declaram que, “se não fosse nossa mãe, nós nos casaríamos com ela”.

O cineasta não possui a mão leve na condução das cenas. Caso esta fábula apostasse em alguma forma de humor absurdo, por exemplo, ou enveredasse pela construção crítica via enquadramentos e montagem, talvez a trágica história de Raffaella (Magaly Solier) possuísse um teor engajado. Ora, o humor jamais funciona pela indefinição da mise en scène. A opção pelo grotesco, sobretudo nas aulas de inglês e na empresa Mama Burrito, se traduz em mera inverossimilhança, conduzida com seriedade pela imagem e pelos atores. O roteiro empilha reviravoltas improváveis, seja envolvendo o namorado Edward (Simon Käser), seja na amizade entre os irmãos e Kristin (Tara Thaller). A explicação a respeito da travessia da família pela fronteira, a leitura de um livro melodramático e a degustação de ostras simbolizando sexo oral resultam em momentos mais incômodos do que propriamente engraçados, visto que o diretor não desenvolve o humor pela estética, e os personagens tampouco os percebem com qualquer grau de estranhamento. Ainda que estejam presentes na maior parte da trama, Paul e Tito possuem personalidades apáticas, sendo desprovidos sonhos para o futuro. Nunca entendemos do que precisaram abrir mão para chegarem a Nova York, nem o relacionamento que possuem com o novo país onde vivem. Os Estados Unidos se resumem ao cenário de passeios para dois adolescentes com hormônios em ebulição.

A Santa do Impossível se revela uma produção ao mesmo tempo bastante erotizada e infantilizada. Os personagens pobres e sujos (transpirando em profusão, com a camiseta manchada e fedorenta, ao contrário dos nativos) pedem às pessoas queridas que cantem canções de ninar, ou oferecem prato de comida em troca de afeto. Ao mesmo tempo, possuem uma relação puramente carnal com o sexo, desprovido de carinho real ou duradouro. “Chega de ternura por hoje”, repete a prostituta, para quem qualquer empatia dos garotos é recebida com desconfiança. Além de idealizar o sonho americano e romantizar a miséria dos estrangeiros, Wilkins oferece um olhar questionável à nudez: que prostituta acariciaria o próprio corpo em sinal de prazer vaidoso antes de atender ao enésimo cliente? A abordagem do relacionamento abusivo entre Paul/Tito e Kristin resume bem a fronteira moralmente dúbia entre amor e exploração. O contato entre o trio termina por destruir a todos, e mesmo assim, o filme tem a certeza de que esta foi uma bela história de amor, como se a paixão destrutiva fosse se tornasse ainda mais romântica por ter experimentado adversidades.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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