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Sinopse

Duas irmãs nutrem uma forte paixão pelo mesmo homem e a força do afeto das duas, quando colocados em oposição, fará com que o impacto de destruição da vida dos três integrantes do triângulo amoroso seja muito potente.

Crítica

Em A Serpente, o cineasta Jura Capela transporta as intrigas contumazes da obra de Nelson Rodrigues (familiares, amorosas, etc.) a uma dimensão mais trágica no sentido clássico. Se o escritor dispunha as suas tramas mordazes e irônicas geralmente no subúrbio carioca, deflagrando ambivalências e hipocrisias, aqui a história que começa com a tentativa de suicídio, passando pelo sexo "pecaminoso" como forma de reacender a chama da vida, é deslocada a um cenário destruído, especificamente as ruínas do crime ambiental de Mariana. Tal aspecto, em consonância com a belíssima fotografia em preto e branco de Paulo Baião, cujo principal atributo é justamente realçar o antagonismo entre a luz e a escuridão, cria uma atmosfera próxima a das tragédias gregas. Desse jeito, o ciúme posterior ao suposto ato de altruísmo de Guida (Lucélia Santos), que cede o marido, Paulo (Matheus Nachtergaele), a sua irmã gêmea, Ligia (Lucélia), para uma noite de sexo e iniciação, prenuncia constantemente o desfecho catastrófico para as partes desse triângulo conturbado.

Há uma teatralidade latente em A Serpente, denunciada não apenas pela cenografia ou pelo modo como a fotografia a salienta, para além de qualquer naturalismo, mas também por conta da chave em que os atores atuam. Lucélia Santos, saindo-se bem ao dar vida a duas irmãs bem diferentes, assume um pouco mais esse tom próprio dos palcos, sendo responsável, boa parte, pela instilação de dramaticidade à situação que se apresenta. Já Matheus Nachtergaele consegue transitar melhor entre os registros encarregados de manter sadia e pulsante a relação entre o cinema e o teatro. A simbiose se complexifica nas cenas externas, quando o realizador lança mão de um habilidoso entrelaçamento de intensidades que trata de, concomitantemente, sublinhar o lirismo e a banalidade das ocasiões. Ela, portanto, dá conta de ressaltar a trivialidade dos sentimentos em choque, das reações de pessoas envolvidas, mas fazendo-o com uma propriedade singular.

Jura Capela, ao extirpar a personalidade carioca de A Serpente ­– há apenas a menção ao Alto da Boa Vista –, retira um ponto significativo de identificação do filme com o autor do qual se alimenta. A utilização das ruínas de um dos maiores desastres ambientais do Brasil é simbólica, pois a destruição provocada pela irresponsabilidade das empresas mineradoras da região dá um toque apocalíptico a determinadas sequências, algo que o cineasta enfatiza com parcimônia. Um dos problemas estruturais do conjunto é o excesso de compartimentação, vide a curta duração dos muitos capítulos, cujos títulos tratam de adensar a filiação com Nelson Rodrigues. A entrada em cena de Décio (Sílvio Restiffe) e Dora (Céllia Nascimento) é praticamente dispensável, uma vez que adiciona pouco ao drama já bem centralizado, servindo apenas para ampliar a contenda principal ao mostrar o marido impotente que reencontra o desejo nas curvas da lavadeira.

É evidente a busca pela plasticidade em A Serpente, não somente no que concerne à beleza. A despeito da curta duração dos capítulos, a encenação privilegia planos longos, também por meio deles mantendo íntegros os elos com o teatro. Lucélia Santos e Matheus Nachtergaele desempenham seus papeis com bastante eficiência. Paulo, Guida e Lígia perdem aquele frescor da ligação estrita com a realidade, comum à obra de Nelson Rodrigues, mas ganham uma dimensão poética nessa interação com os cenários estilizados, sejam os naturais ou os concebidos como num palco italiano. A genuinidade do desejo é encoberta por uma tentativa de promover o choque contínuo entre a vida e a morte. Dessa maneira, pode-se objetar certa frieza no que tange ao erotismo presente (marcada registrada dos livros e das peças do autor) e transferência da sordidez, de um local comezinho, acessível, ao panteão mais filosófico-existencial, o que não compromete os méritos do filme.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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