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Crítica
No dia 13 de outubro de 1972, o voo rumo ao Chile que transportava um time uruguaio de rúgbi (ao todo 45 pessoas entre atletas, familiares, amigos e tripulação) caiu na Cordilheira dos Andes. O caso ficou conhecido pelo teor dramático, pois os sobreviventes resistiram a condições adversas extremas por 72 dias, vendo companheiros e pessoas queridas sucumbirem ao frio, ao agravamento de ferimentos, à fome e/ou à ação das tempestades que castigavam a fuselagem da aeronave encalhada no meio do nada. A história havia sido contada em filme anteriormente, na produção norte-americana Vivos (1993), de Frank Marshal, mas não com o nível de detalhes e a ênfase na brutalidade dessa jornada oferecidos pelo cineasta J. A. Bayona em A Sociedade da Neve. O começo desse longa-metragem selecionado para o Festival do Rio é solar, com os rapazes discutindo táticas de jogo, entre risos brincando sobre os motivos de passar ou não a bola durante as partidas. Comportamento típico da juventude. Vale lembrar que o Uruguai estava prestes a ser tomado pelos militares num golpe de Estado (que aconteceria em 1973). Há ao menos uma cena (ainda que bastante breve) dessa turbulência social iminente – marcada por milicos nas ruas e agitação estudantil. De toda forma, Bayona não estende o relato pregresso ao acidente, sendo o curtíssimo prólogo basicamente algo para ser comparado ao horror posterior.
A Sociedade da Neve fala, em sentido estrito, sobre a irmandade nascida num cenário tétrico. Dito assim pode parecer que o filme recorre de modo apelativo a heroísmos, abnegações e afins para retratar esses 72 dias em que as pessoas sobreviveram apesar de todas as probabilidades contrárias. Assinado por J.A. Bayona, Nicolás Casariego, Jaime Marques e Bernat Vilaplana, o roteiro baseado num livro de Pablo Vierci recorre pontualmente ao sentimentalismo, dosando as emoções e as distribuindo com sabedoria ao longo de uma história marcada por incontáveis momentos dolorosos. Em vez de personalizar demais o relato, o realizador cria uma ideia de unidade, de grupo que funciona no coletivo, justamente para ressaltar a fraternidade nascida da necessidade de resistir. Numa (Enzo Vogrincic) é o narrador, personagem que sinaliza alguns embates pontuais e oferece um olhar singular a respeito do que aconteceu. Mas, esse narrador poderia ser Nando Parrado (Agustín Pardella) ou Roberto Canessa (Matías Recalt), figuras fundamentais para o resgate depois de uma caminhada em dupla durante 10 dias pelos Andes até encontrarem terrenos menos nevados e a ajuda humana. Mas, a escolha de Numa como aquele que comenta as coisas se dá por aspectos que aqui valem não ser mencionados a fim de evitar spoilers desnecessários. Seu relato é sereno, dotado de certa sabedoria explicada à frente.
O cineasta espanhol J.A. Bayona tem como pretensão se distanciar da romantização e criar um drama mais realista de sobrevivência. Essa intenção é perceptível na maneira como ele filma o acidente em si. Há toda uma construção de expectativa, desde o começo das turbulências, a aeronave sendo engolida pela branquidão da Cordilheira dos Andes, a tensão tomando conta dos passageiros até chegar finalmente à queda. O impacto é registrado a partir do interior da aeronave, numa montagem rápida que mostra a fuselagem drasticamente deformada, os corpos amontoados/machucados, assim (re)imaginando visualmente o que teria acontecido, fisicamente falando, no interior do Voo Força Aérea Uruguaia 571. Essa abordagem realista continua nas histórias a seguir, com destaque às dificuldades de ordem prática, o estar rodeado por uma natureza hostil e inclemente. A Sociedade da Neve não é daquele tipo de filme que se apoia demasiadamente nos perfis humanos, pois os dilui em nome da noção mais coletiva de aventura angustiante pela manutenção da vida. Claro, existem momentos em que as individualidades sobressaem, sobretudo quando o canibalismo se anuncia no horizonte como a única possibilidade de encontrar alimento nas redondezas. Uns são contrários, já outros favoráveis a isso, mas nada que gere debates morais ou afins. O importante é viver mais um dia.
Outro ponto positivo e que revela uma bem-vinda contenção na abordagem desse episódio tão espetacular e dramático é a fuga do sensacionalismo. J. A. Bayona poderia aproveitar certos momentos para chocar a plateia, especialmente a partir do primeiro cadáver destrinchado longe da vista dos colegas a fim de fornecer um pouco de proteína aos sobreviventes. Aliás, a direção de fotografia assinada por Pedro Luque é feita de planos mais fechados do que abertos, uma escolha criativa fundamental para representar a sensação espacial de claustrofobia. Diante de um cenário interno minúsculo (a metade do avião destruído) e com o exterior caracterizado por uma brancura que parece infinita e sem muita variação, J. A. Bayona consegue segurar a tensão por cerca de 140 minutos, lidando bem com suas restrições. Já as repetições contribuem para a representação da rotina entediante, à ideia do dia a dia feito de redução de danos, à rápida assimilação de mortes que acontecem aos montes e às tentativas pouco heróicas/redentoras de improvável salvação. O resultado é fruto de um bom equilíbrio entre essa proposta realista sem protagonismos excessivos, ênfase em antagonismos e afins (ainda que haja um verniz para evitar a crueza dos dias insuportáveis), e a valorização da capacidade que uns tiveram de se reorganizar física e mentalmente para sobreviver, mas sem enxergar mortos como menos dignos de louvor.
Filme visto durante a 25º Festival do Rio (2023)
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