Crítica

Quando o assunto é o acaso, os cineastas argentinos parecem ter uma boa experiência. Das Histórias Mínimas (2002), de Carlos Sorín, às Medianeras (2011), de Gustavo Taretto, o imprevisto tem um papel importante, marcado, que ajuda a delinear o perfil de um dos cinemas nacionais mais interessantes da América Latina. Foi dessa fonte que Daniel Burman parece ter bebido em seu filme mais recente, A Sorte em suas Mãos, que chega ao Brasil com mais de um ano de atraso. Um longa cuja graciosidade e fofura parecem ser produto, assim como o destino de seu personagem principal, da mais pura sorte.

A começar pelo fato de que o intérprete do protagonista não é, a rigor, ator. Jorge Drexler tem um Oscar no currículo, mas é pela canção original de Diários de Motocicleta (2004). A Sorte em suas Mãos é seu primeiro (e até agora único) trabalho atuando. A ideia não é de todo desastrada: dá certo ao sabor do acaso. Se às vezes Drexler parece pouco à vontade no papel e suas gracinhas saem meio como piada de salão, isso também pode ser atribuído ao caráter de seu personagem, Uriel. De ascendência judaica, o rapaz herdou do pai uma agência de viagens que também funciona como casa de câmbio, além do gosto pelo pôquer. Com dois filhos, é um mulherengo convicto e morre de medo de engravidar seus casos. Muita informação? Pois continua...

A trama o acompanha durante uma viagem a Rosário, onde pretende fazer uma vasectomia e cair na jogatina num cassino. Lá, reencontra uma antiga namorada, Gloria (Valeria Bertuccelli), recém voltada da França, após terminar seu casamento. Nesse ponto, nosso herói decide largar a vida "desregrada" para se dedicar ao que considera o "amor da sua vida", contando, é claro, com o acaso contra si (ou ao seu favor. Algo do tipo "sorte ou revés"). Se apenas a descrição da trama parece sobrecarregada de informações, imagine o filme inteiro.

Burman quis cruzar tantos destinos diferentes que quase comprometeu o do seu filme. São tantas referências díspares, tantas subtramas paralelas, tantos detalhes, que na maior parte do tempo é difícil entender o motivo daquilo tudo estar ali, senão por acaso. A ascendência judaica do protagonista, por exemplo, parece só ter servido de artifício para que ele atingisse um objetivo em determinado pronto, podendo ser substituída por qualquer outra etnia com o mesmo efeito. A subtrama da mãe de Gloria (uma ótima Norma Aleandro) também parece decorativa, servindo somente para um dos melhores momentos da trilha sonora do filme. Sequências de montagem, como as das bolhas no parque, embora tenham valor simbólico, são mais descritivas do que narrativas. E por aí vai.

A isso se somam referências que, se associadas a outras obras, são tão díspares que parecem completamente aleatórias. Numa lista rápida, é possível identificar traços de Um Homem Sério (2009), Cassino (1995), A Vida dos Peixes (2010), Um Grande Garoto (2002) e Um Dia Especial (1996), por exemplo.

É claro que nem só de despropósitos vive o longa. Algumas cenas, como a que Uriel quer transar com Gloria mas não pode, são de inspiração ímpar, inundando o espectador com um misto único de aflição e comicidade. A montagem paralela do clímax também tem seu mérito, culminando num espetáculo do melhor kitsch que se pode ter.

O bom é que, no fim, A Sorte em suas Mãos é gostoso de se ver. No meio dessa confusão parece repousar um pouco daquela sensação gostosa que tanto gostamos nas comédias românticas mais enlatadas. Mas em se tratando de cinema argentino e de um cineasta consciente de sua linguagem, os clichês de gênero e a direção são usados com mais parcimônia, menos vício, gerando algo diferente – inclua-se aí alguns jump cuts e câmera no ombro, num estilo que lembra O Abraço Partido (2004), também de Burman. Não necessariamente melhor ou mais estético, mas com certeza diferente. O carisma do elenco também ajuda, fazendo com que sobre empatia pelos protagonistas e se torça por um final feliz. Ou, pelo menos, por um final onde todo o caos pareça minimamente organizado.

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é jornalista, mestre em Estética, Redes e Tecnocultura e otaku de cinema. Deu um jeito de levar o audiovisual para a Comunicação Interna, sua ocupação principal, e se diverte enquanto apresenta a linguagem das telonas para o mundo corporativo. Adora tudo quanto é tipo de filme, mas nem todo tipo de diretor.
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