Crítica


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Sinopse

Em A Substância, uma celebridade em decadência (Demi Moore) decide usar uma droga do mercado negro. Esse procedimento replica células e cria temporariamente uma versão mais jovem e melhor de si mesma. Agora em sua versão mais jovem, decide reconquistar para si a fama que já foi sua e que há décadas parecia ter lhe abandonado.

Crítica

Não é de hoje que Hollywood tem sido enxergada, especialmente por alguns de seus integrantes mais críticos, como um lugar grotesco. Cidade dos Sonhos (2001), de David Lynch, pintou um retrato onírico no qual sonhos e pesadelos se misturam na velocidade com que astros e estrelas são descobertos e descartados. A Substância, novo filme da cineasta francesa Coralie Fargeat, não é ambientado necessariamente na Meca do cinema estadunidense, mas seus bastidores televisivos se encaixam perfeitamente nessa ideia do showbiz cuja coxia é sombria, habitada por uma fauna repulsiva marcada por práticas violentas. A protagonista é Elisabeth (Demi Moore), apresentadora de um programa fitness, angustiada pela obsolescência precoce cultivada no mundo do entretenimento propenso a rejeitar. Não há lugar para uma mulher na casa dos 50 anos de idade, o que a leva a aceitar as consequências de um procedimento radical que consiste em “dar à luz” a uma versão “melhor e mais jovem” que pode substituí-la, com a condição de manter certos protocolos indicados pelos inventores e ter uma vida alternada com a “cópia”. De cara podemos fazer uma conexão simbólica com a história de O Retrato de Dorian Gray, livro de Oscar Wilde em que um homem mantém a juventude enquanto o quadro que o representa vai envelhecendo. No entanto, aqui a ideia de Fargeat é contar uma história macabra e sangrenta.

Elisabeth é herdeira do rol de personagens que “vendem à alma ao diabo” em troca de algo impossível. No entanto, ela não é encarada como vítima estranha às engrenagens nefastas dos bastidores televisivos cheios de estereótipos abomináveis e exagerados. Esteticamente falando, A Substância está mais para um pesadelo expressionista do que para um horror social com tintas realistas. A fotografia assinada por Benjamin Kracun (o mesmo de Bela Vingança, 2020) demarca os indícios de um mundo bizarro, vide as tomadas enviesadas e as outras desconfortáveis pelo comportamento vulgar do executivo televisivo interpretado por Dennis Quaid. Desse modo, o surgimento de Sue, o duplo rejuvenescido vivido por Margaret Qualley, não representa a ruptura com o estado de normalidade dessa realidade, mas apenas a sua exacerbação nos termos da ficção científica e do horror. A câmera está sempre próxima dos personagens, incomodamente colada em suas ações e reações simbólicas. E isso é percebido pela intenção microscópica da decupagem, com cada gesto ganhando peso excessivo por conta da vontade de mostrar uma realidade distorcida e hipertrofiada. A entrada de um antiácido no copo d’água é tão retumbante quanto a indiscrição do executivo que vomita machismos no banheiro masculino enquanto usa o mictório. Ruídos ganham dimensão exorbitante. Ninguém ali é gente, todos são meros tipos.

Coralie Fargeat já havia demonstrado a vontade de renovar um subgênero do horror com Vingança (2017), longa-metragem anterior no qual retrabalhou o filão rape and revenge­ com uma abordagem feminina. Aqui ela envereda pelo gore, não poupando o espectador de imagens graficamente fortes, como as do nascimento de Sue a partir de um rasgo enorme nas costas de Elisabeth ou mesmo as da “cópia” costurando a “matriz” com agulha e linha cirúrgica. É bem-vinda a coragem de flertar com o mau gosto ao demonstrar as consequências físicas extremas das inconsequências morais e éticas dos personagens e das instituições. A Substância fala do subterrâneo de um universo no qual as mulheres são levadas a disputar em função de coisas tão naturais como a passagem do tempo e a auspiciosa ascensão alheia. Aliás, se há algo muito bem trabalhado do ponto de vista metafórico é a brutalidade da rivalidade feminina. A realizadora coloca duas faces de uma mesma moeda digladiando ferozmente, literalmente vampirizando a vitalidade uma da outra. Isso tudo porque o “mercado” afirma que não há lugar para ambas, justamente a fim de criar uma pequena guerra. No entanto, tão logo apresente a premissa de ficção científica que rapidamente escorrega para o body horror, a realizadora fica girando em círculos, repetindo enunciados, às vezes parecendo estagnada mesmo quando a trama avança.

Em A Substância encontramos homenagens ao cineasta Stanley Kubrick, vide os ambientes simétricos, o padrão do piso do corredor da TV, semelhante ao do Hotel Overlook de O Iluminado (1980), e a canção-tema de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). Mas o embate entre “cópia” e “matriz” acontece em looping, sem variações, até desembocar no último terço. Nele, Coralie Fargeat escancara o gore para mostrar a brutalidade por meio de abominações, agressões físicas e selvagerias. Como havia feito em Vingança, a realizadora faz um banho de sangue hiperbólico proporcional à violência que rege o cenário social. Logo, as monstruosidades são representações da opressão masculina, mesmo quando frutos de escolhas femininas. Vencedor do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes de 2024 – resultado questionável, pois esse quesito é seu calcanhar de Aquiles –, o longa conta com o ótimo desempenho de Demi Moore, mas a grande interpretação é de Margaret Qualley. A atriz norte-americana, encarregada de simbolizar o ideal de beleza jovial, também domina os termos do terror, sendo ambígua e intrigante. Como dito antes, a trama mostra o que tem de mais extremo nos últimos minutos, afrontando o bom-gosto (o que é revigorante). Porém, nesse clímax encontramos várias facilidades e conveniências, como o monstro transitando até o auditório ou a brecha providencial que permite a luta corpo-a-corpo. As mensagens são fortes, a roupagem é criativa (mas às vezes cansa) e o saldo é instável.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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