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Crítica


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Sinopse

Depois que uma aldeia é saqueada, duas crianças de uma família em fuga se perdem a caminho do exílio. Kyona e Adriel precisam reencontrar a estrada para suas novas vidas enquanto escapam dos implacáveis perseguidores.  

Crítica

A orfandade é um dos dos rastros mais hediondos das guerras. Cada soldado morto no front e/ou cada civil assassinado pode deixar crianças desamparadas para trás. Se para um adulto é desesperador sobreviver em mundos incendiados por conflitos, cujas consequências beiram o insuportável, como medir as experiências infantis nesse contexto? O cinema já nos apresentou algumas produções dilacerantes sobre o assunto, sendo uma das principais o longa-metragem animado Túmulo dos Vagalumes (1988). Nele, dois irmãos japoneses são obrigados a tentar sobreviver sozinhos perambulando num país em chamas durante a Segunda Guerra Mundial. Selecionado para o 12º Festival Varilux do Cinema Francês, A Travessia tem uma estrutura bastante semelhante a do filme assinado pelo Studio Ghibli, inclusive também enxergando os horrores pelos olhos de dois irmãos largados à própria sorte depois da separação forçada dos pais e do restante da família. Kyona (voz original de Emilie Lan Dürr) e Adriel (voz de Maxime Gemin) testemunham desde cedo a intolerância de grupos supremacistas e se perdem na vida enquanto tentam se manter vivos. A animação é feita com base em quadros pintados, com uma técnica semelhante a de Com Amor, Van Gogh (2017). Mas aqui a ênfase é na irregularidade das pinceladas, na deformação expressiva dos contornos e das formas.

Temos em A Travessia uma jornada dramática de persistência. Depois de se perderem dos pais, os protagonistas são acolhidos por crianças de rua que, assim como eles, também são obrigadas a tomar parte precocemente de certos protocolos da vida adulta. Portanto, de uma hora para outra, ambos precisam aprender a se virar, a conseguir comida, a interagir num meio social completamente diferente, a construir uma nova possibilidade de existir diante de um cenário absolutamente desfavorável. No entanto, a cineasta Florence Miailhe não enfatiza tanto essa necessidade febril da adaptação constante, preferindo lançar mão de várias elipses – supressão temporal para tornar a história mais dinâmica – em prol da amplitude da trama. Trocando em miúdos: para conseguir contemplar uma longa trajetória em pouco mais de 80 minutos, ela acaba prejudicando o impacto emocional de certos episódios. Sim, pois não temos muito tempo para testemunhar, por exemplo, Kyona sofrendo por conta dessa “nova realidade”, enquanto Adriel tem uma capacidade mais evidente de adaptar-se, para o bem e para o mal, pois essa disposição também pode ser entendida como resignação. Tanto que, adiante, quando eles são adotados juntos por um casal de excêntricos ricaços, a disparidade vem novamente à tona, mas sem que o filme adote qualquer postura diante da recorrência. A realizadora prefere sublinhar gestos, bem como a obrigação de se manter em movimento.

Assim, A Travessia é um acúmulo de dolorosas experiências parecidas, o que resulta numa repetição sem tantas variações. Como temos a protagonista narrando em primeira pessoa, até a estética adotada pode ser compreendida como uma maneira criativa de lançar luz sobre a memória, neste caso uma tentativa de materializá-la. A "cara" do filme seria, assim, uma projeção dos sentimentos e das rememorações de Kyona. Sim, pois somos apresentados àquele mundo através dos olhos da sobrevivente, o que justifica não apenas alguns retratos humanos bem planos, mas também a inconstância das pinceladas e a despreocupação quanto à harmonia. O que pode parecer um desenho tosco, na verdade é a manifestação das lembranças retorcidas pelo tempo. Pena que Florence Miailhe não explore essa decisão formal que tenta tornar mais intensa e complexa a nossa relação com fatos e recordações pintadas na telona. Além disso, o potencial lúdico é pouco aproveitado. Passagens lindas como a da trapezista “se transformando” em ave por conta do figurino e a transição da iluminação conseguida pelo escurecimento dos tons são as bem-vindas exceções que confirmam a regra. Em quase todo longa-metragem essas pinceladas servem de silhuetas alusivas às especificidades da protagonista, mas não chegam a ser tão fundamentais para tornar a experiência marcante de um jeito específico.

Pegando emprestada uma lógica dos filmes de estrada (os road movie), A Travessia utiliza a peregrinação dos irmãos refugiados para revelar os horrores do território em guerra e seus personagens recorrentes. A partir da perspectiva da sobrevivente, temos o contrabandista vilão; as pessoas que arriscam valores para vencer desafios; o jovem cuja ambiguidade moral serve de salvo-conduto; os benfeitores que afloram como centros de enorme resistência; e aqueles tombam pelo caminho. Adriel se torna uma figura rasa, basicamente um contraponto de resignação à obstinação corajosa de Kyona. Já a narradora-protagonista tem qualidades, defeitos e medos destacados nesse retrato empático de migrantes, refugiados e retirantes. Florence Miailhe pinta com as tintas que lhe parecem adequadas (traços demarcados, matizes fortes, contornos oscilantes) a história das crianças que precisam lidar com as cargas pesadas do mundo adulto. Na atualidade em que êxodos forçados geram crises humanitárias, é louvável essa reflexão pessoal sobre as ervas daninhas da intolerância e da maldade humana. Não fosse tão preso ao básico – crianças sofrendo, homens/mulheres bons/maus –, e se atrelasse melhor as camadas macro e micro, o resultado poderia ser bem mais do que um bonito esboço.

Filme visto no 12º Festival Varilux de Cinema Francês, em dezembro de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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