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Crítica


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Sinopse

Uma retrospetiva detalhada de um momento emblemático da história do Brasil, apresentado de uma outra perspectiva: a abolição da escravidão. Ao contrário do que é pregado por livros didáticos e outras vertentes da "história oficial", a população escravizada se estruturou para criar uma forte oposição ao regime, criando quilombos, organizando revoltas, escolhendo líderes do movimento e convocando a população negra para a luta armada.

Crítica

O documentário A Última Abolição trata de temas de extrema relevância que dizem respeito à revogação da escravidão no Brasil. Dono de uma linguagem simples que, concomitantemente, favorece a contundência dos dizeres e uma estagnação formal, o primeiro longa-metragem de Alice Gomes se debruça sobre uma série de questões concernentes à luta dos afrodescendentes na sociedade brasileira desde antes da assinatura da Lei Áurea, fazendo um inventário necessário. Se valendo da experiência de profissionais de áreas diversas, então amalgamadas, como a história, a sociologia e o direito, para citar apenas três, a realizadora constrói um painel didático. Guiado por uma cronologia geralmente retilínea, elucida com propriedade determinados episódios e movimentos deturpados por uma historiografia que, para começo de conversa, não confere o espaço devido aos abolicionistas negros, aos que lutaram bravamente antes que a alforria se tornasse constitucional no Brasil.

Sobressai em A Última Abolição o acumulo de saberes, engendrados criativamente pela montagem da também co-roteirista Natara Ney. Ela encadeia histórica e ideologicamente as experiências e os conhecimentos dispostos. Na seara formal, o filme se ressente da falta de dinamismo, pois, basicamente, é fruto da soma dos vários depoimentos com as imagens de arquivo, trabalhadas na tela como ícones de um passado que ecoa atualmente. Mesmo assim, prevalecem os discursos repletos de informações imprescindíveis para o entendimento da construção da identidade cultural da nação, especialmente no que tange à apregoada falácia da democracia racial. O resgate de personalidades negras fundamentais para os processos anteriores ao emblemático ato da princesa Isabel é outro dos pontos fortes do todo, cujo compromisso principal é dar voz e atenção a traços históricos negligenciados pela oficialidade de livros e relatos que, conforme projeto de exclusão ainda persistente, minimiza a conscientização e o orgulho da negritude.

São escassos os momentos de contradição em A Última Abolição, especialmente porque o filme intenta promover uma unificação dos enunciados em prol de restituições que se fazem urgentes. Cada testemunho é encarado como uma peça solta, de carga individual considerável, para a consolidação de uma imagem ampla. Sua função é reparar a verdade tão vilipendiada pela historiografia oficial. São, por exemplo, oferecidos indícios suficientes para a compreensão dos instrumentos de exclusão da população negra após a abolição da escravidão, bem como dos mecanismos de perpetuação simbólica da mesma, vide a massa carcerária brasileira e o parco acesso às instituições de ensino superior. São fragmentos da engrenagem perversa que reproduz furtivamente os grilhões de um preconceito velado pela bravata da igualdade, isso num país completamente miscigenado como o nosso. Embora quadrado, o percurso estabelecido no conjunto não é reiterativo, sobretudo por apostar na complementariedade.

A Última Abolição contém um clamor pela restauração de uma narrativa de glórias que pertence única e exclusivamente aos negros. Alice Gomes se encarrega de valorizar as palavras firmes e embasadas de homens e mulheres que encaram o outrora com brios, mas também com uma melancolia derivada do grau aviltante de esquecimento a ser combatido diariamente. Ainda que não se aprofunde nos instrumentos desse apagamento gradativo e despudorado, o documentário expõe satisfatoriamente as suas causas, se configurando numa bem-vinda aula de cidadania, engessada pela ossatura carente de variações e respiros, mas, ainda assim, potente o bastante para reverberar uma mensagem a ser inadiavelmente assimilada. Em tempos de relativizações gritantes, frutos da ascensão de um pensamento conservador que chega a, vejam, questionar a dívida histórica que o Brasil tem com sua população negra, o filme não apenas embasa esse déficit social, como inviabiliza qualquer dúvida quanto ao tamanho da nossa ignorância.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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