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Sinopse

Durante uma investigação, a jornalista Ellie encontra cartas de amor escondidas entre as páginas de livros, trocadas entre "J." e "Boot". Ela continua procurando novos indícios sobre a identidade dessas pessoas, até descobrir uma história de amor proibido nos anos 1960, interrompida por uma tragédia.

Crítica

Alguém deveria pesquisar a porcentagem de personagens fictícios que sofrem de amnésia grave após um acidente, em comparação com a porcentagem real de pessoas carregando as mesmas sequelas nestas circunstâncias. É provável que exista um desnível significativo entre os dois números. De qualquer maneira, a amnésia constitui um motor narrativo irresistível aos romances e melodramas: de repente, a vítima de perda de memória desconhece a pessoa querida, aproxima-se de quem não gostava, torna-se alvo de interesseiros e mentirosos. Esta condição permite criar duas histórias em uma, como se os adultos tivessem a oportunidade de reiniciar a vida do zero, com nova família, novo emprego, novos conhecidos, descobrindo o mundo pela segunda vez. Menos do que uma sina trágica, o recurso se transforma em possibilidade metafórica de reinvenção. Este é apenas um dos temas clássicos explorados em A Última Carta de Amor (2021), além dos reencontros fortuitos entre amantes do passado, cartas românticas escondidas nas páginas dos livros, mentiras produzidas por um vilão para afastar o casal, uma tragédia afastando os apaixonados que pretendiam fugir juntos. Há beijos sob a chuva no meio da rua, ao som de orquestra em volume crescente, jovens solteiros e atraentes que esbarram um no outro ao entrarem no elevador, reuniões secretas em praças, juras de amor eterno. O filme transborda de romantismo em cada cena.

Assim, seria ilógico criticá-lo pela presença de clichês, ou por se ater à narrativa clássica – esta representa uma escolha voluntária da diretora Augustine Frizzell, a partir do livro de Jojo Moyes, ao invés de um erro de tom e conceito. O projeto se destina aos fãs dos textos de Jane Austen, aos amantes que devoram os escritos de Nicholas Sparks e se comovem com histórias de amor trágicas, em estilo P.S. Eu Te Amo (2007). Existe um público específico para este escapismo sentimental, que brinca de maneira eficaz com as expectativas do público médio: sabemos exatamente quem ficará com quem, no entanto, somos capazes de nos surpreender quando o desfecho prometido enfim se concretiza. O cinema possui o poder nada negligenciável de apresentar finais chocantes embora fossem os únicos possíveis, manipulando o nosso sentimento de fé e esperança. Este projeto carrega a crença de que amores nunca morrem, casais apaixonados podem se reaproximar, e adversários serão devidamente punidos mais cedo ou mais tarde. Durante épocas sombrias, marcadas por pandemias, crise política e empobrecimento das populações, obras do gênero equivalem a um doce açucarado, tão gostoso quanto pobre em substância, que se devora com prazer e um pouco de culpa. Não dá para viver só de bombas de chocolate, nem apenas de romances impossíveis, porém a Netflix oferece sua visita simbólica à fantástica fábrica de chocolates.

A única pretensão digna de nota em A Última Carta de Amor se encontra na tentativa tímida de reunir um melodrama dos anos 1960 e uma comédia romântica dos anos 2020, em paralelo. Jennifer (Shailene Woodley) e Anthony (Callum Turner) dominam a narrativa passada, interpretando uma mulher casada e um jornalista que se apaixonam e embarcam num relacionamento extraconjugal. Este segmento pretende deslumbrar o espectador pelos penteados, as roupas dos anos 1960, o casarão suntuoso da mulher rica, as viagens a lugares paradisíacos. Neste trecho, o ideal de fuga diz respeito ao poder aquisitivo. Já o segmento no presente traz Ellie (Felicity Jones), uma jornalista imprevisível que descobre por acidente as cartas de amor atestando a paixão vivida por “J.” e “Boot” décadas atrás. Aqui, aposta-se na crença do amor em lugares inesperados, por trás da aparência de banalidade – cada apartamento ao nosso redor poderia esconder uma empolgante paixão. Uma das metades adota um tom solene e fatalista, repleto de promessas em vocabulário pomposo. Já a outra busca um estilo próximo de O Diabo Veste Prada (2006), com Ellie encarnando a atrapalhada profissional que, por acaso, também ganhará um pretendente pelo caminho. A escritora Jojo Moyes e os roteiristas Nick Payne e Esta Spalding enxergam no amor o único caminho para a felicidade, algo contestável para os dias de hoje – seria perfeitamente possível aplicar os clichês tradicionais a um discurso mais contemporâneo.

A construção estética chama atenção por um elemento particular: a direção de fotografia. Nem sempre as análises de filmes se dedicam especificamente ao trabalho de iluminação, enquadramento, cores e movimentos de câmera, no entanto, é difícil ignorar as opções de George Steel nesta função. O segmento na década de 1960 sofre com um processo pesadíssimo de pós-produção, recebendo filtros azulados e escurecidos com as bordas desfocadas (o “efeito íris”). Os atores se escondem nas sombras, transitando por ruas com eterna aparência de fim de tarde. Em sua modificação agressiva do material captado, Steel se assemelha aos novos usuários de Instagram, aplicando uma infinidade de filtros às fotografias. A proposta de um ambiente etéreo, de baixa nitidez e luzes borradas, distrai o espectador dos personagens e dos sentimentos, chamando atenção às escolhas incompreensíveis de decoração e saturação da imagem. No trecho presente, as cenas na redação da jornalista se revelam satisfatórias, mas assim que entram no pequeno apartamento de Rory (Nabhaan Rizwan) ou de Jennifer (Diana Kent), a câmera mergulha de novo nas trevas. Steel constrói cenários apropriados a filmes de terror, além de um beco multicolorido de cores neon, na década de 1960, que não faria feio nas produções da Marvel. As escolhas estéticas são incompatíveis com a temporalidade, justificando-se pelos sentimentos (personagens tristes vivem em apartamentos escuros) ao invés do realismo.

No elenco, Felicity Jones surpreende ao encarar com sucesso a única personagem cômica do conjunto. Conhecida pelos dramas, demonstra um timing impressionante para as sequências do croissant e da fuga diurna da casa do amante. Compreende-se que a atriz tenha optado por este material singelo, porém capaz de demonstrar sua habilidade em novos registros. Já Shailene Woodley faz uso vacilante do tom de voz, além de apresentar postura e rosto pouco expressivos. Ela soa jovem demais para a personagem, desconfortável nas roupas apertadas, nos cabelos armados, e incapaz de demonstrar qualquer afeto pela filha pequena que motiva decisões de vida importantíssimas. No lado masculino, Callum Turner comprova a desenvoltura preciosa para dramas de época (ele se tornou o equivalente masculino de Keira Knightley no gênero, precisando urgentemente buscar projetos diferentes). A presença de Nabhaan Rizwan, ator britânico de origem indiana, talvez pudesse ser comemorada em nome da diversidade, até percebermos que ele recebe o personagem mais raso do elenco, sem conflitos próprios para além do envolvimento com Ellie. Ou seja, há pouco a comemorar neste sentido. Para o bem ou para o mal, A Última Carta de Amor oferece com sucesso a pílula de alienação desejada pela equipe. Só fica difícil acreditar na jornalista maravilhada, quando se exclama: “As cartas são tão ricas em sentimentos, nunca li nada igual!”, diante das linhas pobres e genéricas trocadas entre os amantes - mas passemos. O que vale é a intenção.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
5
Francisco Carbone
7
MÉDIA
6

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