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Sinopse

Jesus é um carpinteiro que vive um dilema, pois é quem faz as cruzes com as quais os romanos crucificam seus oponentes. Ele se sente como um judeu que mata judeus. Para lidar com esse conflito, decide ir para o deserto, mas antes pede perdão a Maria Madalena, que se irrita com ele, pois não se comporta como uma prostituta, e sim como uma mulher que quer sentir um homem ao seu lado. Ao retornar, Jesus está convencido de que é o filho de Deus e salva Maria Madalena de ser apedrejada e morta. Em seguida reúne doze discípulos e prega o amor, mas seus ensinamentos são encarados como uma ameaça, e por isso é preso e condenado a morrer na cruz. Já crucificado, imagina como teria sido sua vida se fosse uma pessoa comum.

Crítica

Responsável por grande polêmica na época de seu lançamento, A Última Tentação de Cristo foi amplamente atacado por fundamentalistas cristãos que julgavam o então mais novo filme de Martin Scorsese, adaptado da obra de Nikos Kazantzakis, um insulto ao seu credo. O longa, é verdade, traz não um Jesus Cristo abençoado, e sim um amaldiçoado, que ao invés da bondade e da sabedoria intrínsecas a sua figura, carrega consigo o questionamento, o medo e outras fraquezas humanas. Mas é óbvio que tais críticas são infundadas: a película jamais se mostra nociva aos ensinamentos cristãos – e veja que, mesmo que o fosse, isso não seria caso para diminuir ou somar pontos ao projeto. Apenas nos é apresentada uma versão mais realista e menos calcada no fantasioso, que ao contrário das que costumamos ver, procura se focar no conflito interno do personagem principal, dividido entre seu lado humano e aquele divino, ainda que nunca deixe de considerar a existência de ambos.

É neste ponto que entra Scorsese, um diretor que, além de dominar seguramente a linguagem cinematográfica, é também um estudioso e disseminador da história da arte e do cinema mundial, algo que pode ser melhor notado em seus fantásticos documentários Uma Viagem Pessoal com Martin Scorsese Através dos Filmes Americanos (1995) e Minha Viagem à Itália (2001). Como tal conhecedor que é, o cineasta não tarda a enxergar em seu longa um potencial barroco que provém da contradição, do conflito entre o sacro e o carnal, entre a vida efêmera e pecadora e a promessa da eternidade no paraíso, entre o humano e o divino. Compõe, então, seus quadros com um jogo de luzes e sombras contrastadas, enche a boca de seu protagonista ora com indagações, ora com críticas à ordem vigente e, por fim, com súplicas de perdão. São características visuais e temáticas que fazem jus às obras de artistas como Caravaggio e Gregório de Matos Guerra.

Claro que o diretor já imprimia um estilo próprio (como sempre o fez) aqui também, seja com os constantes zoons in – as chamadas “chicotadas”, nada mais do que viradas rápidas de câmera – ou até mesmo com sua tendência de associar o vermelho ao perigo e à violência, algo que faria com mais cuidado em Os Bons Companheiros (1990). Mas é na prudência com que conduz estes conflitos internos e externos de Jesus (Willem Dafoe) que reside o grande mérito do realizador nesta obra, que, repito, é inocente das críticas que recebeu e recebe ainda hoje de religiosos conservadores. A cena que mostra os apóstolos questionando a opção de Cristo por uma vida humana comum sintetiza as demais escolhas do filme que, por mais que fujam da versão “clássica” da história, jamais deixam de ser fiéis em teor a ela. Há ainda uma sequência que mostra o protagonista tendo relações sexuais com Maria Madalena, mas fica óbvio também que tal sequência faz parte de um delírio do personagem. Afinal, é perfeitamente aceitável, até mesmo para o mais hipócrita dos cristãos que, sendo Jesus parte homem e parte deus (segundo seus próprios ensinamentos), possuísse as características de ambos, inclusive a libido.

Críticas a parte, Dafoe se mostra uma escolha acertada para viver o mais famoso dos personagens. Sua expressão é quase sempre a de um homem perturbado, e sua tendência aos gritos reforça a ideia de um Jesus Cristo confuso e muitas vezes desesperado. Por outro lado, Harvey Keitel, aparecendo como Judas Iscariotes (apropriadamente ruivo, lembrem sobre o vermelho e Scorsese), é justamente o seu ponto de equilíbrio. Esta é uma ideia auxiliada pela própria persona do ator, que sempre transmite este ar de segurança e de voz da razão, aqui em uma performance severa que torna seu discurso final ainda mais comovente. Até mesmo David Bowie e o diretor Irvin Kershner (sim, o responsável por O Império Contra-Ataca, 1980) surgem em tela por uns instantes, como Pôncio Pilatos e Zebedeu, respectivamente.

Em última instância, é Scorsese agregando figuras de seu próprio tempo aos seus projetos. Este, especificamente, ao terminar com os dizeres “it is accomplished” pronunciados por um Cristo crucificado, porém, tomado pelo alívio de ter cumprido sua missão corretamente, retrata com precisão os sentimentos humanos a favor do objetivo de se alcançar o divino. Dessa forma, é possível dizer que morreu como homem e deus. Sendo assim, para um fervoroso cristão tecer comentários atacando A Última Tentação de Cristo seria necessário ou não ter visto o filme, ou estar com inveja de não conseguir retratar com tamanha complexidade, respeito e profundidade artística a história milenar de seu maior símbolo.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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