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Crítica


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Sinopse

A jornalista Pétria Chaves investiga como as estruturas de desinformação online operam, qual influência podem ter no processo democrático e os esforços possíveis para conter o fenômeno.

Crítica

A Verdade da Mentira (2020) possui objetivos muito claros. O filme dirigido por Maria Carolina Telles busca denunciar a desinformação em massa, acelerada pelas redes sociais e cooptada pelos principais estrategistas políticos. O documentário parte da constatação de que a polarização contemporânea é acentuada por algoritmos que escolhem o conteúdo ao qual temos acesso, despertando a confortável sensação de que todos ao redor pensam como nós. Em outras palavras, as ditas “fake news” (termo evitado pelo projeto, pois conotado ideologicamente) corresponderiam tanto a um gesto deliberado de manipulação das massas quanto a um desejo do próprio público/leitor em ser manipulado, no sentido de conviver dentro uma bolha onde sua opinião é constantemente reafirmada. Embora não investigue casos muito específicos de campanhas difamatórias, o filme toma a precaução de trazer fontes confiáveis (tanto jornalistas veteranos quanto agências de verificação de fatos), além de efetuar propostas para a possível superação do problema.

Não haveria qualquer questionamento a priori quanto às intenções dos criadores. Os problemas começam no modo como a informação é veiculada. Primeiro, surpreende a presença de uma “apresentadora” dentro de um documentário, o que reforça o caráter jornalístico da obra. Entenda-se: é compreensível que os jornalistas entrevistados se comportem como tais, porém se interroga a postura do cinema ao abraçar o formato da reportagem. “Eu sou Pétria Chaves”, ela se apresenta ao público, enunciando um breve currículo e fornecendo as provas necessárias de que constitui uma pessoa confiável para abordar o tema da desinformação. Chaves torna-se a protagonista, dividindo as atenções com cada entrevistado. A câmera nunca sabe ao certo se filma o rosto dos especialistas ou a expressão atenta da jornalista diante dos mesmos. Durante uma entrevista via áudio, filma-se a personagem escrevendo num bloco de anotações. O trabalho do jornalismo também se converte em tema, tendo Chaves como exemplo a seguir. Ela inclusive verbaliza seu posicionamento a respeito das opiniões alheias, outro recurso atípico do cinema documentário: “Marco Ruediger sublinha uma premissa que eu concordo (sic)”. Além de protagonista e heroína do combate às notícias falsas, ela se converte em porta-voz da direção.

O filme jamais convida o espectador à reflexão, preferindo evocações retóricas e formulações prontas. “Mas afinal, por que somos tão crédulos? Em quem acreditamos?”. Apesar da pertinência das falas de Pedro Dória, Ângela Pimenta, Fernanda Hamann e outros, o discurso se torna reincidente, sem abrir brechas a ideias contrárias nem posicionamentos políticos incisivos. Nunca se confia na capacidade do espectador em formular indagações por si próprio. Preocupado em não ser instrumentalizado pela direita, nem pela esquerda, o resultado evita analisar casos concretos de campanhas de desinformação, nomear membros do Gabinete do Ódio, detalhar as estratégias de Steve Bannon e semelhantes. Estuda-se um fenômeno urgente por um ponto de vista externo e global, evitando os meandros de sua aplicação prática no cotidiano brasileiro. Seria possível adotar um posicionamento político sem se converter em panfleto de qualquer partido, e sem fornecer a impressão contestável de que ambos os lados se equivalem, e que exploraram com a mesma intensidade as notícias falsas durante a última campanha presidencial. O fomento ao ódio, ao medo e à intolerância possui raízes muito claramente ligadas ao pensamento direitista, alimentando-se de outros temas complexos (racismo, homofobia, misoginia etc.) que o documentário evita destrinchar.

No entanto, a fragilidade mais evidente se encontra em sua construção imagética. A Verdade da Mentira possui muitas ideias, mas poucas imagens a oferecer ao espectador. Em sua curta duração, oferece cenas genéricas para preencher as falas, ou ainda “rechear” o som ao longo da extensão do filme. Nenhuma captação se encontra à altura dos registros sonoros. Elas aparentam, em sua grande maioria, extraídas de bancos de imagens impessoais (provavelmente, em decorrência do receio de se posicionar politicamente). Três tipos de recursos compõem a quase totalidade do documentário: planos aéreos de cidades com drones, multidões utilizando telefones celulares e os rostos dos entrevistados. Algumas animações competentes ilustram as explicações, reforçando o caráter audiovisual reincidente. Ora, a repetição dos planos de celulares e panoramas em plongée não transmite qualquer pensamento sobre estas cidades em particular, nem sobre os consumidores de notícias falsas, tratados como abstrações (as localidades se transformam na mesma, as pessoas agiriam do mesmo modo). No terço final, porcentagens são apresentadas em tela sem sabermos a qual ano se referem. Há uma falha evidente na contextualização de um movimento intrinsecamente sociopolítico.

Em contrapartida, ironicamente, paira a impressão de que o projeto cumpre seus objetivos. Talvez seja incoerente exigir um aprofundamento estético de um filme sem grandes ambições estéticas, preferindo funcionar enquanto extensão utilitarista do jornalismo investigativo. O filme procura se legitimar pela mensagem, não por suas escolhas de direção. Neste sentido, o discurso sobre a desinformação e a gravidade do fenômeno se torna bastante claro. Entretanto, também é passível de questionamento enquanto linguagem. O cinema se apequena a cada vez que minimiza a importância de suas imagens. Afinal, nunca coube à estética ensinar: ela provoca, perturba, causa sensações. Incontáveis metáforas, alusões, fricções na montagem, nos sons e na luz seriam possíveis a partir do forte tema escolhido. O documentário aposta no caminho mais literal, assumindo para si a função dos professores, palestrantes e jornalistas. O espectador se depara com um projeto de investigação competente dentro de um formato que não lhe cabe, ou que não explora as inúmeras potencialidades de linguagem. A potência destas falas caberia sem grandes perdas num podcast ou numa conferência. O cinema exige mais do que boas intenções e importantes mensagens.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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