Crítica
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Sinopse
Libby levou os Estados Unidos a uma ação militar com diversas mortes na ocasião em que trabalhava como conselheira da vice-presidente. Quatro anos mais tarde, ela deseja expor os detalhes dessa desastrosa decisão.
Crítica
O projeto de A Verdade em Segredo (2018) é ambicioso até demais. O diretor Joe Chappelle pretende debater as ações catastróficas dos Estados Unidos na guerra contra o terrorismo sem possuir recursos para mostrar um exército, armas, aviões, qualquer cidade no Oriente Médio, nem mesmo um grande cenário reproduzindo a Casa Branca ou algum grande edifício destinado a representar a CIA, FBI e demais serviços de inteligência. Por isso, as maiores autoridades do governo discutem política em pequenas festas de faculdade, na sacada das casas ou nos porões de um prédio qualquer. “Não te incomoda que a ideia do excepcionalismo norte-americano seja um anacronismo?”, pergunta Libby (Tika Sumpter), arquiteta da “vitória total” que matou centenas de milhares de civis em ataques nucleares, à vice-presidenta dos Estados Unidos, Rachel (Jamie Lee Curtis). Esta última responde, discorrendo sobre a necessidade de enviar uma mensagem forte ao mundo, de responder a provocações com bombas etc. Ambas estão sentadas em suas cadeiras, em casa, vestidas com trajes comuns.
Por esta razão, pode ser difícil acreditar no universo proposto pelo filme. O diretor parece buscar através de sua protagonista o ideal de uma mulher negra e forte, de grande poder retórico e forte autonomia, nos moldes de Kerry Washington em Escândalos: Os Bastidores do Poder (2012 - 2018), ou Viola Davis em How to Get Away With Murder (2014 - ). No entanto, nem a atriz nem o roteiro constroem uma figura plausível, capaz de sugerir potência ou perigo. Jamais presenciamos a maior especialista em guerras no país inteiro demonstrando qualquer forma de conhecimento a respeito. Tika Sumpter caminha lentamente, mantém-se calada tempo todo, não demonstra qualquer remorso, irritação nem vontade específica relacionada à guerra. Como acreditar nela para o papel da estrategista responsável por toda a política internacional norte-americana? Jamie Lee Curtis desempenha com desenvoltura o papel da mulher assertiva e autoritária, ainda que ostente um poder inacreditável para uma vice-presidente, ao passo que o presidente possui pouca autonomia nessa história. Completando o trio de personagens há Martin (Ben Tavassoli), jovem de origem árabe cujos pais foram mortos no bombardeio orquestrado por Libby.
Chappelle não demonstra muita sutileza na hora de construir personagens, reduzindo-os a uma única característica principal. As três primeiras cenas revelam Libby pensativa, com o olhar perdido ao horizonte, traço dominante da protagonista ao longo de todo a narrativa. A primeira cena de Martin revela o rapaz admirando longamente o corpo de uma mulher na faculdade (a câmera subjetiva acompanha a bunda dela). Durante a perseguição à professora genocida, o jovem cheira os perfumes dela e mexe nas calcinhas da gaveta. O diretor não constrói apenas um garoto revoltado contra a responsável pela morte de seus pais, mas também um universitário com os hormônios em ebulição. A tendência a erotizar o conflito provoca alguns momentos questionáveis: quando Libby se queixa de estar sendo perseguida, escuta como resposta de um homem poderoso que ela deveria se acostumar com isso, por ser bela. Como os homens poderiam se segurar? Nenhuma outra fala ou cena aparece para se contrapor à fala machista. Já Rachel se converte na defensora irredutível das guerras, da primeira à última cena. Todos os diálogos dela, sem exceção, são destinados a defender ataques militares. O presidente, figura embrutecida e pouco inteligente vinda do Texas, representa um misto entre George W. Bush e Donald Trump.
No entanto, assumindo o filme enquanto produção B e ultrapassando suas lacunas de produção, ele revela algumas qualidades dignas de nota. Talvez os projetos mais baratos também sejam aqueles com menor responsabilidade de prestar contas em termos de bilheteria, críticas e visibilidade. Inicialmente, o discurso acena ao possível mea culpa da “arquiteta da vitória total”, deixando a impressão de que o perdão e o arrependimento servem de consolo para grandes genocídios mundiais. No entanto, aos poucos, o roteiro passa a instrumentalizar a professora de modo a torná-la um mero exemplo de causa. A Verdade em Segredo se torna o retrato de uma nação que finalmente percebe o erro cometido no incentivo às guerras, tentando viver amargamente o fracasso do sonho americano de superioridade e heroísmo. Não por acaso, a maioria de reações à presença de Libby na universidade é negativa – ela se torna o tabu que todos precisam evitar. A jovem mulher não representa mais um grupo de pessoas que incentivou os ataques no Iraque, Síria e Afeganistão, ela encarna os ataques e o armamentismo norte-americano. Por isso, vive mal consigo mesma, percebendo o seu erro. Tika Sumpter não possui a complexidade necessária para um papel desta envergadura, mas em defesa dela, o filme também não. Chappelle dá passos maiores que as pernas, mesmo assim, demonstra uma coragem digna de nota.
Ao citar Josef Mengele e Hannah Arendt, o cineasta estabelece uma conexão direta entre a política internacional dos Estados Unidos e o nazismo. A referência aos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki permitem estabelecer um paralelo perturbador entre 1945 e as guerras do século XXI. Rumo ao final, as atitudes do governo conservador (visivelmente republicano, embora não admitido enquanto tal) tornam-se cada vez mais próximas das práticas mafiosas. O filme ousa considerar os Estados Unidos como os verdadeiros terroristas do mundo moderno, unindo Libby e Martin num mesmo final, irônico e explosivo. A professora será esquecida pela trama uma vez que sua confissão for colocada no papel: o que interessa ao discurso são os segredos de guerra que ela tem a passar. Uma vez revelados os fatos, a protagonista se torna descartável pela trama. O filme se encaminha de modo pouco refinado na tentativa de combinar a geopolítica apressada (o Reductio ad Hitlerum) com a vingança simbólica dos descendentes de árabes (Martin representa toda as vítimas de guerras no Oriente Médio), passando por citações religiosas (o final ao som de “Glória, glória, Aleluia”). Chappelle ainda precisa melhorar muito enquanto diretor, no entanto a ferocidade ao abordar as feridas políticas norte-americanas possui seu valor dentro do cinema contemporâneo.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 6 |
Leonardo Ribeiro | 4 |
MÉDIA | 5 |
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