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Sinopse

O filme acompanha a história do fora da lei australiano Ned Kelly. Oriundo de uma família islandesa rebelde, ele conhece Harry Power no território selvagem onde trabalha. Sob influência dele, Kelly abraça uma vida de crimes, formando adiante uma gangue exaltada por colonos australianos.

Crítica

O elemento de maior destaque neste filme, desde as primeiras imagens, é o escopo de sua produção. O diretor Justin Kurzel oferece ao famoso bandido australiano uma série de imagens luxuosas, incluindo planos aéreos por planícies infinitas, luzes estroboscópicas numa floresta fechada durante a noite, dezenas de locações e cenários, festas em mansões ricamente decoradas, além de atores do topo da lista de Hollywood: Russell Crowe, Nicholas Hoult, Charlie Hunnam. Para revisitar a lenda local, o cineasta australiano emprega as ferramentas do cinema épico, indo do nascimento à morte para transformar Ned em herói incompreendido de seu tempo. A porta de entrada para a História é a idealização romântica.

Consciente de suas licenças poéticas, o cineasta decide iniciar o filme com a brincadeira “Nada do que você vai ver é verdade”, apenas para ler, em seguida, uma carta escrita por Ned ao filho, na qual promete dizer apenas a verdade. Este jogo pode soar pueril, no entanto, torna consciente (ou talvez seja melhor dizer, autocondescendente) qualquer desvio em relação aos fatos. Ao invés de se concentrar nas matanças célebres do protagonista, o filme está muito mais interessado numa investigação de sua psicologia: como nasceu o bandido mais famoso do país no século XIX? Que fatores de sua infância o levaram a constituir uma gangue? Kurzel encontra a resposta na negligência parental. Ned é filho de uma prostituta e de um pequeno bandido, tendo sido vendido pela própria mãe a um homem violento em troca de uma soma simbólica.

A narrativa não demora para instaurar o ideal determinista do homem bom corrompido pela natureza. O roteiro favorece o maniqueísmo a confrontar Ned a uma sequência de homens perversos: o sargento O’Neil (Charlie Hunnam), que abusa sexualmente da mãe, o ladrão Harry Power (Russell Crowe), que o estimula a matar pela primeira vez, o policial Fitzpatrick (Nicholas Hoult), que chantageia Ned para se casar com a irmã dele. O único homem confiável é o melhor amigo Joe, por quem nutre sentimentos homoafetivos, muito discretamente abordados no filme. O mais interessante, para Kurzel, é justificar a matança da gangue como forma de vingança simbólica aos maus tratos na infância. Talvez esta não seja a descrição psicológica mais complexa do mundo, mas serve para atenuar a crueldade dos gestos de Ned aos olhos do público.

O olhar ambíguo ao protagonista é reforçado pelas escolhas de direção de atores. Kurzel conduz o ótimo George MacKay ao limite da loucura perto do clímax, como se Ned fosse possuído por uma febre messiânica na qual lhe escapa toda forma de racionalidade. Aos poucos, a noção de uma insurreição popular contra os policiais corruptos é substituída pelos delírios de um garoto violento com dificuldades de resolver seu complexo de Édipo. Na importante cena diante de um professor de inglês, MacKay gira os olhos, contorce o corpo como se enfrentasse a abstinência de alguma droga ou estivesse possuído por um espírito. A trama tão rica em implicações sociais reduz-se então ao cinema-espetáculo com litros de sangue, tiroteios e belas cavalgadas noturnas através da terra seca. Kurzel está muito mais preocupado em deslumbrar o público com a violência do que dissecá-la para além da sugestão de uma “legítima defesa” contra o mundo agressor. Ned adquire um caráter monstruoso, com os músculos enrijecidos, os olhos arregalados e as palavras de ordem bradadas à loucura contra um exército muito maior do que o seu.

Por fim, A Verdadeira História de Ned Kelly soa como uma extravagância, uma versão teatralizada dos anos 1860. O diretor possui evidente prazer em filmar homens usando vestido e atores famosos atuando nus, além de incluir uma trilha sonora rock, décadas antes de o gênero existir. Kurzel demonstra ser um diretor vaidoso, certamente capaz de compor imagens deslumbrantes, e ciente demais de seu talento para perder a oportunidade de explorar ao máximo a amplitude simbólica desta lenda. O diretor enxerga em Ned Kelly o fetiche, a história de ascensão e queda, de maneira descritiva e linear. O espectador descobrirá pouco mais do que uma trajetória suicida de vingança a qualquer preço, espécie de delírio no qual as fronteiras do real e do imaginário, anunciadas desde os letreiros iniciais, poderiam desempenhar um papel muito mais instigante.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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