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Sinopse

Ex-imperador do Brasil, Pedro está atravessando o oceano Atlântico rumo à Europa em 1831. Ele busca forças para desafiar o irmão que usurpou seu reino em Portugal. Doente e fragilizado, Pedro precisa ir em busca da pátria.

Crítica

A Viagem de Pedro (2021) constitui uma bem-vinda iniciativa de preencher, através da arte, uma lacuna histórica fundamental nos registros nacionais. O que se passou na longa travessia do ex-imperador do Brasil em 1831, rumo à Europa, quando buscava retirar o irmão do trono? Há poucas informações a respeito deste processo de transição entre duas pátrias, especialmente para um sujeito nascido em Portugal, mas criado em terras brasileiras. Como estaria se sentindo o jovem imperador, perseguido pelo povo que amava, e traído pelos familiares? A diretora e roteirista Laís Bodanzky possui a tese de que o percurso representa o ápice da crise existencial do personagem. Pedro questionaria suas origens, seu direito de assumir o trono, sua virilidade, o amor das mulheres. Preso na embarcação britânica, teria delírios de grandeza, de paranoia, de superioridade, além de sofrer com a maresia, a “calentura" mencionada em Marinheiro das Montanhas (2021), e provavelmente, os efeitos de uma sífilis jamais diagnosticada. Ele estaria literalmente preso em pequenos cômodos e corredores abafados, na posição contraditória de um poderoso sem poder.

É interessante oferecer um olhar humanizado e psicológico às figuras geralmente limitadas a fatos e conquistas nos registros frios dos livros de História. No entanto, uma série de fatores limitam as nobres intenções do projeto. Primeiro, a construção de um protagonista opaco: na leitura efetuada pelo longa-metragem, Pedro se torna um sujeito inconstante, ao invés de complexo. Em certos momentos, demonstra amor condicional pelos filhos, mas depois não manifesta qualquer saudade por eles. Ele mantém a vida íntima de modo reservado, antes de disparar à mesa, com os colegas, elogios sobre o tamanho e a potência de seu membro. Ele adquire trejeitos malandros perto das crianças; autoritário junto aos almirantes, e infantis na companhia dos cozinheiros que jogam búzios para descobrir o seu destino. A mania de perseguição surge de maneira abrupta, e se interrompe na sequência seguinte. O roteiro aparenta ter criado um checklist de fatores que desejava incluir, sem trabalhar no desenvolvimento simultâneo destes ao longo da trama: precisava haver paranoia, e então uma cena de sexualidade potente, outra de impotência, e um delírio noturno. Constroem-se todas essas cenas, sem origem nem consequência. Pedro fica limitado a esquetes contraditórias, incapazes de formar um conjunto coeso.

Neste contexto, Cauã Reymond se vê perdido. Seja pela maneira de falar (“Como é que eu vou ganhar uma guerra de pau mole?”, grita furioso ao médico), seja pelo corpo moldado em academia de ginástica, ou apenas pela inconsistência na fala e na postura corporal, ele se converte num sujeito contemporâneo. Apesar de ampla formação militar, nunca descobrimos os planos concretos de guerra, nem a aplicação prática dessas características. O intérprete fica ainda mais desconfortável com as falas em francês, acompanhando a dificuldade do elenco em geral, lutando para pronunciar línguas que não domina. Bodanzky poderia atualizar por completo os fatos, trazendo Pedro ao século XXI por meio de alguma ousadia simbólica (a exemplo de Sofia Coppola, que introduziu um par de tênis All Star no armário de Maria Antonieta), porém se aplica em manter um rigor histórico que apenas aprofunda a inadequação do personagem e do intérprete ao contexto. Ele se perde em frases de efeito heróicas ou empostadas: “Vim aqui para que os franceses possam escolher suas próprias leis!”, “Será que vão lembrar de mim como um quadro ou uma caricatura?”, “Quero dar muito amor aos meus filhos. Um amor que nunca tive”. Trata-se de racionalizações que dificilmente pertenceriam com tamanha clareza à psique de um sujeito em vias de enlouquecer.

As escolhas estéticas transmitem igual senso de indefinição conceitual. A janela mais próxima do quadrado seria perfeita para aludir aos moldes clássicos do audiovisual e favorecer os retratos, ao invés das paisagens. No entanto, este formato cria problemas à cineasta, que teima em encontrar ângulos para a transferência dos móveis à embarcação ou às espiadas do protagonista na ala dos ex-escravos. A elaboração das cenas internas em estúdio poderia facilitar a decupagem e a iluminação, mas os autores oferecem obstáculos para si mesmos. As reuniões estratégicas com o Comandante Talbot (Francis Magee) são escuras demais, apesar das janelas nas laterais, e nem a montagem, nem a câmera percorrem a embarcação em planos longos o bastante para se compreender sua geografia. Caso a intenção tenha sido de provocar o senso de desorientação, análogo à loucura, talvez o resultado se justifique. No entanto, atores e câmeras são espremidos por corredores estreitos, onde uma cena de sexo oral demonstra claras limitações para a equipe, e os tetos baixos prejudicam a luz. Em provável busca do respeito à configuração do século XIX, impediram-se as alternativas de falsear iluminação e espaços, comuns aos dispositivos em estúdio. É curiosa tamanha fidelidade à reprodução numa trama a respeito de uma lacuna histórica.

A Viagem de Pedro transmite a estranha sensação de ter sido um projeto com problemas de definição, roteiro e, especialmente, montagem. Como se estimou importante, em alguma fase do processo, mencionar as culturas africanas, a sexualidade feminina e o sofrimento dos ex-escravos, cada um deles ganha uma cena, espalhada a esmo entre os delírios de Pedro, as narrações em alemão, os flashbacks da infância e os pesadelos com mulheres. Uma vez mencionado o tema, o trabalho de representatividade se dá por cumprido e segue adiante. Os símbolos se estagnam, os conflitos de identidade e infidelidade apenas se repetem, e a ex-escrava de intensa libido (Isabel Zuáa) representa somente isso: uma mulher sedenta por sexo. Homens negros se jogam ao mar, sem consequências; cozinheiros insultam o imperador, sem represália; tripulantes zombam de Pedro, e nada lhes ocorre. O longa-metragem está repleto de sementes de conflitos que não germinam: ao final do filme, tem-se a impressão de que ele sequer começou. Assim, desperta a aparência de um roteiro com inúmeras versões, numa produção conflituosa que produziu fragmentos desconexos, entregues à montagem encarregada de encontrar alguma forma de coesão. No entanto, o montador jamais descobre um fio condutor a este quebra-cabeças com peças faltando, outras duplicadas, e algumas que parecem pertencer a um desenho diferente.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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