Crítica

Marie está feliz. Ela acaba de sair de uma importante entrevista de emprego, e suas chances são ótimas. Na praia, cruza olhar com Paul, um rapaz tímido, belo e interessante. Seu coração bate mais forte. A melhor amiga, sempre ao lado, o convida para comemorar com elas à noite. Afinal, aquele é o dia do aniversário de Marie. E o encontro termina da melhor maneira possível, com os dois na cama, apaixonados. E muito felizes.

Marie se espreguiça. Logo percebe que a noite passou e o novo dia já amanheceu. E da mesma forma, outros 15 anos se passaram. Como, ninguém sabe. Muito menos Marie. Quando percebe que a cama é diferente daquela em que fora dormir na noite anterior, sente o primeiro susto. Depois os cabelos, que agora são curtos. O belo apartamento, que possui uma vista incrível da Torre Eiffel, bem no centro de Paris. A criança, que na cozinha espera por sua torrada de café da manhã, a chama de “mamãe”. A empregada, os vestidos chiques, as joias elegantes, os compromissos de trabalho, a conta bancária recheada, o possante carro na garagem. O pai que já não existe. A mãe que não quer falar com ela e mora com outro homem. E, pior de tudo, Paul, que segue por ali, mas com tanto rancor por ela que nem consegue olhá-la direito nos olhos.

Assim começa A Vida de Outra Mulher, uma obra cativante e absolutamente envolvente. Escrito e dirigido por Sylvie Testud a partir do best seller de Frederique Deghelt, marca com sensibilidade e inteligência a estreia como realizadora da atriz vista em filmes como Piaf – Um Hino ao Amor (2007) e A Música e o Silêncio (1996). Sem se ocupar com explicações estapafúrdias para a inusitada situação que desenha – Marie teve amnésia? foi abduzida por extraterrestres? tanto stress profissional e familiar motivou um regresso psicológico? – que invariavelmente se revelariam inverossímeis, a diretora decide apenas seguir com a história, colocando cada espectador como se estivesse na própria pele da protagonista. Ela também não sabe o que aconteceu. E tudo o que precisa daqui pra frente é descobrir como lidar com o futuro possuindo apenas os sentimentos de hoje – ou de ontem.

Outro grande acerto de A Vida de Outra Mulher foi a escolha abençoada de dois atores em estado de graça para defenderem os personagens principais. Como Marie, Juliette Binoche dá mais um show de interpretação, mostrando porque é, hoje em dia, uma das atrizes mais completas e versáteis da sua geração. Ela está em cartaz no Brasil simultaneamente em três filmes – neste, em Elles, de Malgorzata Szumowska, e em Cosmópolis, de David Cronenberg – e em cada um seu registro de atuação é completamente distinto dos demais. Sem falar no arrebatamento que foi vê-la num dos favoritos de 2011, Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami, que entre outros reconhecimentos lhe rendeu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes. Binoche é intérprete no sentido mais amplo da palavra, conseguindo se adaptar perfeitamente a qualquer situação exigida pelo roteiro.

Da mesma forma se sai bem Mathieu Kassovitz, que apesar de ser um diretor de respeito – como no premiado O Ódio (1995) ou no recente A Rebelião (2011) – tem construído uma interessante carreira na atuação, marcando presença com delicadeza e virilidade em projetos memoráveis, como O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001), ao lado de Audrei Tautou, ou no polêmico Amen (2002), de Costa-Gavras. Kassovitz faz o par perfeito com Binoche, revelando aos poucos todo o sentimento perdido durante esta década e meia, mas que ainda existe, mesmo que num nível muito mais profundo. Caberá aos dois, juntos, abrirem espaço para que o que uma vez os uniu ganhe novamente força.

Se feito em Hollywood ou mesmo pela Globo Filmes, A Vida de Outra Mulher teria todos os elementos para resultar numa comédia pastelão facilmente descartável. A produção, no entanto, é européia, e isso significa muito mais do que apenas coragem para se aprofundar no assunto que propõe como também todo um desenvolvimento psicológico de causa e efeito que no contexto geral fará toda a diferença. Além, é claro, de Juliette Binoche e Mathieu Kassovitz, belos e atraentes, entrosados e irresistíveis, uma dupla de atores em plena sintonia que deixa transbordar da tela tudo que seus personagens sentem um pelo outro, promovendo uma conquista irreversível. É um filme sem muitos porquês, mas com vários de agora em diante. E olhar para frente, como bem sabemos, muitas vezes é tudo o que importa.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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