Crítica
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Sinopse
Uma criança se perde dentro de uma floresta de São Petesburgo, onde são registrados cerca de 300 desaparecimentos por ano. Alguns cadáveres costumam ser encontrados no local, sem as roupas. A equipe de resgate parte em busca do pequeno Nikita, acompanhada de uma repórter que registra o caso. No entanto, eles se deparam com uma força sobrenatural que não pretende deixá-los partir.
Crítica
“Este filme é inspirado em eventos reais. Os produtores pedem que as pessoas não investiguem o caso por conta própria”. Sim, claro. Boa tentativa. A ideia de filmes sobrenaturais “baseados em fatos”, para parecerem ainda mais assustadores, talvez tenha provocado alguma repercussão em 1999 com A Bruxa de Blair, quando o found footage era incomum e as pessoas desconheciam dispositivos de autoimagem. Selfies, smartphones, Facebook ou TikTok eram inexistentes. Em 2021, a sugestão de que tramas sobrenaturais correspondam à realidade se resume a uma estratégia de marketing desgastada pelo tempo. É verossímil que diversas pessoas tenham desaparecido nas florestas de São Petesburgo. Mas a história não versa sobre elas, e sim sobre a suposta entidade feminina buscando novas vítimas pelas matas. Caso um diretor se apropriasse de um crime real para introduzir a figura de fadas e dragões, pararíamos de sugerir a veracidade do projeto. De qualquer modo, o recurso nos lembra que algumas formas de terror, por mais improváveis que sejam, ainda se legitimam pelo pretenso vínculo com fatos. Em tempos de fake news, espera-se que as pessoas estejam mais céticas quanto às histórias espetaculares.
Quanto aos vínculos com o real, A Viúva das Sombras (2020) é apresentado enquanto found footage, o que tampouco corresponde à verdade. De fato, há personagens com câmeras caseiras, e parte das imagens provém de gravações de aparência amadora, que teriam sido encontradas após uma tragédia. Em contrapartida, este recurso ocupa menos da metade da narrativa. Assim que encontra dificuldades para justificar a presença da câmera ligada, o cineasta Ivan Minin não se aperta: ele simplesmente volta à filmagem tradicional, de um ponto de vista externo, em olhar onisciente. Há diversos planos aéreos com drones, planos de detalhes de um carro, sequências distanciadas do grupo correndo na floresta e outros materiais que nunca poderiam ter sido filmados por um dos personagens. A história divide o grupo de resgate na locação, porém mantém câmeras filmando a todos simultaneamente. Assim, as imagens tremidas ostentam a aparência do found footage, porém sem a lógica inerente ao subgênero. Filmes como A Bruxa de Blair (1999), REC (2007) e A Visita (2015) se esforçam para justificar o ponto de vista subjetivo, inventando peripécias para manter a câmera ligada enquanto os personagens são atacados por uma força do mal. Já o equivalente russo sequer se esforça.
No que diz respeito ao terror, Minin efetua um curioso trabalho de ritmo e ambientação. Dentro da floresta fechada, com uma criança desaparecida e vozes sinistras por todos os lados, seria fácil aumentar a tensão e construir a claustrofobia a céu aberto. Entretanto, o cineasta evita a escalada do medo: a cada possível aparição da Viúva, a montagem simplesmente interrompe a cena, oferecendo um longo black e passando à ação em outro grupo de personagens. A ocultação seria interessante caso o filme trabalhasse as sugestões: o corte indica um ataque? Alguém morre durante esta ausência? Teremos uma revelação quando a imagem retornar àquele personagem? Nada disso. O potencial do terror é frustrado – ou castrado, como convém à história de uma mulher que mata o marido – sem que o espaço fora de quadro acrescente ao poder de insinuação ou metáfora. É possível que as manifestações tenham sido retiradas por restrições orçamentárias. De qualquer modo, a tensão se estaciona: os personagens continuam calmos e sensatos após múltiplas intervenções da Viúva. (Ou melhor, apenas as mulheres sucumbem a surtos histéricos, enquanto os homens mantêm a sanidade).
O projeto se converte num exemplar com pouco terror propriamente dito. A impactante figura do cartaz jamais dá as caras, infelizmente. O modo como a obra é apresentada ao público brasileiro também prejudica a experiência. A Viúva das Sombras chega ao cinema sem cópias originais, apenas duas formas de dublagem: a versão em português e a curiosa versão dublada em inglês e legendada em português simultaneamente. Esta última foi apresentada aos críticos, que se depararam com a cacofonia de escutar tantos Lyosha, Andrey, Nikita e Kristina pronunciados com sotaque americano. No início, quando há personagens idosas, e no final, com a presença de crianças, a dublagem beira o cômico: as senhoras têm a voz de atrizes jovens, enquanto o menino adquire uma voz próxima da paródia. Diante de um filme de gênero que explora tão pouco a mitologia de seu país (ao contrário do eficiente A Noiva, 2017, dos mesmos criadores), a fusão com vozes americanas ressalta a impressão de impessoalidade. A este propósito, os personagens adquirem personalidades indistintas: ganha um brinde quem puder descrever três traços de personalidade de cada um. Ou dois, que seja – eles são intercambiáveis. Minin jamais se preocupa com os humanos, nem com a criança desaparecida, e ainda menos com a protagonista malvada, dotada de uma construção fraca.
Como nem tudo são trevas, a perda de referências dentro da mata provoca uma brincadeira interessante com os sentidos: a equipe de resgate segue por um caminho traçado, até escutar um som que a conduz à direita, e depois outro, à esquerda, e mais um abaixo. Logos, estão perdidos. Ao invés de figuras tolas, trata-se de profissionais competentes, enviados a uma missão suicida sem sabê-lo. É uma pena que se deparem com uma enésima representação da bruxa-feiticeira, perversa e nociva, além de símbolos sem desenvolvimento: os ícones de feno, as marcas de rituais nos galhos das árvores, a possessão intermitente. É ainda mais lamentável que sejam levados a repetir uma das cenas mais famosas de A Bruxa de Blair, num gesto mais próximo do plágio do que da homenagem. Os poderes da entidade poderiam ter sido aplicados desde o primeiro minuto, pois os personagens estão sempre ao alcance da vilã. No entanto, ela demora para demonstrar do que é capaz, afinal, não haveria um longa-metragem se passasse logo à ação. Obrigado, força do mal, por cooperar com o diretor e esperar o momento certo de se manifestar. O roteiro evita desenvolver a criatura, provocá-la, fazê-la correr perigos. Assim como o espectador, a Viúva apenas observa os adultos perdidos até o diretor estimar que já circularam tempo o suficiente – é hora de morrer. Existe um aspecto tão artificial quanto tedioso neste terror sem causa e efeito, sem provocação nem duplo sentido. Um terror que, embora mergulhado na escuridão, permanece terrivelmente transparente.
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