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Sinopse

Numa gravação na Chicago de 1927, surgem tensões entre a lendária Ma Reiney, considerada a Mãe do Blues, seu trompetista ambicioso e os empresários brancos determinados a lucrar acima de qualquer coisa.

Crítica

O cineasta George C. Wolfe não se distancia da teatralidade original de A Voz Suprema do Blues. Baseando-se na peça homônima escrita por August Wilson – autor também do texto que deu origem a Um Limite Entre Nós (2016) –, ele efetivamente se sai melhor ao condensar a ação numa sala pequena ou no calorento estúdio de gravação em que a denominada Mãe do Blues surge como uma trovejante presença impositiva. Quando a câmera vai para o exterior, especialmente às ruas da Chicago de 1927, o artifício soa deslocado, uma concessão banal à vida acontecendo fora do ambiente no qual são desveladas questões que dizem respeito às tensões raciais presentes desde as fundações dos Estados Unidos. Pensando apenas em termos de encenação, esses instantes em que sobressai a natureza postiça dos horizontes claramente reproduzidos digitalmente num chroma-key são ruídos desnecessários, sinalizações ao artifício que, infelizmente, não é utilizado ativamente como engrenagem deliberada da articulação formal. Acaba soando realmente como meio termo incômodo.

Assim, evitando radicalizar com uma trama inteiramente nos interiores, o realizador atenua o que poderia ser um diálogo franco entre teatro e cinema. Frequentemente, até como cacoete da crítica, histórias contadas em cenários fechados são envelopadas como “teatrais”, assim simultaneamente colando no adjetivo um quê pejorativo. Isso talvez se explique por um resquício da necessidade, nos primórdios, do cinema emancipar-se das artes que lhe emprestaram elementos a fim de demonstrar maturidade e independência. O que acontece em A Voz Suprema do Blues, no entanto, é de fato subserviência a componentes mais relativos aos palcos do que às telonas. E isso não ocorre por conta da dinâmica espacial, até porque temos filmes profundamente cinematográficos em espaços exíguos – estão aí Sidney Lumet, com seu 12 Homens e uma Sentença (1957), e Roman Polanski, com suas obras-primas em apartamentos, para desmentir o contrário. Aqui o problema está na concepção da encenação, além do modo como o roteiro se presta a mimetizar a estrutura de pequenos atos.

O protagonismo de A Voz Suprema do Blues é repartido em vários personagens, embora tudo gire em torno de Ma Rainey, figura factual conhecida como Mãe do Blues, aqui numa composição não menos que excelente de Viola Davis. Enquanto esperam a celebridade chegar ao estúdio para gravar um disco, os componentes de sua banda divagam sobre assuntos como a musicalidade, a colocação do negro na sociedade norte-americana e as ambições. O trompetista Levee (Chadwick Boseman, em seu último trabalho no cinema antes da morte precoce em decorrência de um câncer agressivo) é o elemento deflagrador das tensões, aquele que frequentemente perturba a aparente rotina calma, propondo arranjos e modos de sobressair numa sociedade profundamente segregacionista. O esqueleto do roteiro privilegia monólogos curtos em que os presentes se expressam sobre os vários tópicos abordados. Assim, acumula informações, posicionamentos e colocações fragilmente costuradas como parte de uma colcha maior. A preservação da natureza impostada e solene original enfraquece o filme.

Há muita coisa importante discutida nesse longa que não dá conta de consolidar pontos de vista dissonantes/consonantes. O problema quanto às manifestações relativas à afirmação do afro-americano numa coletividade impune ao discriminar é a falta de aposta na força dramática dos gestos, dos silêncios e da capacidade comunicativa da linguagem corporal dos excelentes atores à disposição. Tudo é muito elucidado, escancarado, o que acaba resfriando a voltagem dos instantes de espera, justamente aqueles em que a palavra não reivindica o protagonismo. Assim, A Voz Suprema do Blues é um filme de enunciados intensos bem colocados, de falas mordazes e ferinas, mas de impacto imediato e evanescente. Se trata de uma sucessão de discursos efetivos, relevantes, mas carentes de potência para além de seu momento de existir. Exemplo disso, o fato de Ma ser irascível com os empresários brancos, uma maneira de subverter a vigente lógica de poder. É algo perfeitamente compreensível pelo contexto, mas o diretor insiste em reiterar com explicações para que não sobrem dúvidas. No fim das contas, o didatismo é mais incômodo do que necessariamente a teatralidade.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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