Crítica
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Sinopse
A angústia do artista diante do resultado desastroso das eleições presidenciais de 2018 no Brasil. Um testemunho em primeira pessoa diante da possibilidade de o país entrar em queda livre.
Crítica
Existe algo muito curioso na temporalidade de Abismo Tropical (2019). O diretor Paulo Caldas acompanha um dia na Avenida Paulista, em São Paulo, mais especificamente as 24 horas que viriam a consagrar Jair Bolsonaro como presidente da República. Em meio aos fãs aguerridos do então candidato de extrema-direita, ele se indaga sobre seu papel enquanto artista e sobre o comportamento particular destes eleitores. Por um lado, o dispositivo cinematográfico chega à multidão sem saber qual resultado as urnas trarão ao país. Por outro lado, oferece uma reflexão pós-eleição, tendo plena consciência do veredito. Trata-se portanto de um cinema no futuro do pretérito. Para fazer uma comparação bipartidária, o recurso provoca a estranheza equivalente de narrar a eleição de Lula, questionando ao espectador “Ele conseguirá um dia se tornar presidente”? O filme movimenta-se tanto em registro ao vivo, acompanhando as ações conforme se desenvolvem, quanto no passado, refletindo sobre acontecimentos dos quais ninguém se esqueceu, até porque o desastroso governo atual não o permite.
O cineasta aposta no delicado exercício da “História do presente”, ou talvez seja melhor dizer, a rememoração de um passado imediato. Compreende-se o desejo de refletir sobre os fatos, adotando uma licença poética quanto à utopia de se distanciar de um processo em andamento. Além disso, as configurações se modificaram bastante desde então: o Brasil de 2020 está há anos-luz do Brasil de 2018. Em consequência, a narração que domina a narrativa transparece a ambiguidade. Por um lado, ela apresenta o conteúdo mais pessoal possível: Caldas narra sua história de vida, com a própria voz, em primeira pessoa, evocando as lembranças do pai militar, dos filhos pequenos, dos amigos cineastas. O autor se expõe com uma franqueza ímpar. Por outro lado, as falas são enunciadas a partir de um texto empostado, de entonação literária. Quando o protagonista em off menciona sua “asma emocional” ou alerta ao fato que “o inverno insiste em ficar”, ele prepara um suspense premonitório para algo que, visto em retrospecto, não possui mais nada de imprevisível. O projeto encontra-se na fina camada que separa a angústia relacionada ao futuro e a certeza relacionada ao passado. Ele busca condensar a imersão do primeiro com o distanciamento do segundo, sem perceber que estas setas de forças idênticas, ambas aplicadas ao corpo do presente, apresentam força de resultado nulo.
A discussão política se torna fruto do embate na linha do tempo. O documentário oferece ponderações válidas, sobretudo na chave da constatação: percebe-se a ascensão de uma força autoritária, brutal, apoiada por fanáticos movidos por uma pulsão de morte. O bolsonarismo é descrito através de uma mistura de espanto (quanto ao futuro) e desolação (quanto aos últimos dois anos), ou ainda de cólera (na anunciação) e de lamentação (no convite à releitura). É difícil contestar o raciocínio deste narrador-personagem-cineasta-eu-lírico quando evoca a “comemoração de um neonazismo, retrocesso à violência e ao ódio”. No entanto, questiona-se a natureza retórica das falas, fornecendo respostas às próprias perguntas. “Dizem que este é o país do Carnaval, do samba e do futebol. Será?”, indaga a voz. “Quem serão as vítimas? Os de sempre: negros, pobres, mulheres, LGBTs”. O didatismo do texto impede que se investigue nuances: que articulações de oposição entre centro e esquerda se construíram contra a extrema-direita? Todos os apoiadores do presidente pensam de maneira idêntica? Como surgiu e se fortaleceu o bolsonarismo? Fugindo à análise sociológica, o autor privilegia a leitura psicológica do progressimo mergulhado num torpor coletivo que se supõe partilhado pelo espectador.
O olhar assumidamente unilateral se traduz na escolha do preto e branco. As duas cores demarcam os opostos, além de provocarem distanciamento do real, favorecendo o teor hipnótico. “É tudo preto no branco”, reafirma a voz, sublinhando a escolha fotográfica. Abismo Tropical está repleto de opções estéticas tão funcionais quanto literais: após a vitória da truculência, o mundo vira de cabeça para baixo. Na tentativa de escapar ao dia opressor, um drone se levanta aos céus, em forma de respiro. A mixagem distorce os sons das ruas, aproximando a aglomeração bolsonarista de um espetáculo monstruoso. A escolha mais demarcada diz respeito ao slow motion dominando a integralidade das cenas. Quantos longas-metragens optaram por algo tão radical e, ao mesmo tempo, tão simples (por constituir uma escolha pontual aplicada do início ao fim)? Caldas obtém sucesso nas intenções de lirismo, fluidez e coesão. Ele transmite de maneira eficaz a sensação de perda de referências, apropriada ao debate a respeito do tempo e das rupturas democráticas. Entretanto, quando tudo é lentidão, nada o é: a câmera lenta teria se tornado mais potente em contraste com cenas em 24 quadros por segundo. As imagens começam a se repetir, correndo o risco de provocar a fadiga e anestesia dos sentidos, avessa à interpelação.
O discurso produz uma experiência amarga ao combinar fatos (“Foram terríveis 21 anos de ditadura”), sentimentos pessoais e interpretações exageradas (projeções do autor, a exemplo de “Transeuntes com expressão de angústia ou psicose”). Resta a impressão de que, se fosse finalizado e lançado imediatamente depois, ou mesmo antes da eleição de 2018, concentrando-se na perspectiva do futuro sombrio, o documentário teria se convertido num alerta fundamental. Ora, o projeto nunca dissipa o gosto de uma argumentação tão pertinente quanto envelhecida. Ainda temos o direito, em 2020 – ou no fim de 2019, quando o filme foi apresentado em festivais – de nos deparar com o bolsonarismo com a surpresa de quem o vê pela primeira vez? Quantas vezes vamos alertar uns aos outros sobre os perigos instalados no poder há anos? Talvez esta seja a mera projeção deste mesmo crítico quanto às suas frustrações com a inércia da esquerda, sendo projetadas numa obra que jamais teria a pretensão de condensar a complexa política brasileira. Reconheço, é irônico que este texto empregue as mesmas frases retóricas e a projeção de medos pessoais que critica no filme. Talvez este seja um reflexo da nossa impotência enquanto escritores, cineastas, artistas e cidadãos em lidar com a ressaca persistente após dois anos – ou com o abismo, segundo Caldas.
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