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Sinopse

Em Acompanhante Perfeita, um casal de namorados decide passar um tempo na companhia dos amigos do homem. Depois de chegar a uma casa afastada, propriedade de um misterioso russo, a verdade sobre a natureza relação vem à tona junto com a revelação de um plano maligno. Thriller.

Crítica

O avanço tecnológico foi muitas vezes retratado nas telonas como algo perigoso. Não são poucos os robôs e/ou outras máquinas cinematográficos se rebelando contra proprietários, pervertendo funções originais e colocando a própria supremacia humana em risco. Em A Acompanhante Perfeita os dispositivos até podem ter atitudes agressivas, mas a ameaça principal continua sendo humana, terrivelmente humana. Na trama, um casal formado por Josh (Jack Quaid) e Iris (Sophie Thatcher) estão indo passar um fim de semana na casa dos amigos dele. O cinema nos deixou calejados com relação a propriedades afastadas, das quais não se pode facilmente fugir. Logo, é provável que algo de brutal aconteça por lá. Aliás, a tragédia já é anunciada no começo, especificamente no monólogo confessional de Iris sobre a emoção espetacular sentida em apenas dois momentos específicos: quando conheceu Josh e, mais tarde, ao matá-lo. De todo modo, não parece haver qualquer indício de problema no horizonte quando os pombinhos finalmente chegam aos domínios de um homem russo de meia-idade que pode ser taxado de inconveniente (quando muito). Drew Hancock, autor do roteiro e estreante na direção de longas-metragens, demora pouco para revelar a verdadeira natureza do relacionamento de Josh e Iris. Porém, pelo bem da surpresa de quem ainda não assistiu ao filme, isso será aqui omitido o máximo possível. Com roupagem criativa, o diretor discute o tema do relacionamento abusivo.

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Há algo de levemente estranho na maneira como Iris está comprometida em agradar os amigos do namorado. Existe também uma pontinha de ruído na submissão quase canina dela a ele. Mas até aí tudo bem, afinal de contas não são poucos os relacionamentos reais que contam com dinâmicas semelhantes de sujeição e insegurança. No entanto, uma vez que somos informados da verdade acerca do cenário bem mais futurista do que parecia num primeiro momento, fica fácil perceber o que há ou não de humano em cada gesto dos personagens principais. Entretanto, voltando aos trilhos principais, esse casal que parece ter uma convivência harmônica vai ser chacoalhado quando o anfitrião tentar algo que acaba em desastre. Notem que a iniciativa desagregadora partiu do russo, mas quem paga o pato é Iris, tratada como o animal selvagem que deve ser caçado por uma floresta que ela desconhece e depois neutralizado. Na medida em que A Acompanhante Perfeita progride em meio a essa perseguição por uma garota inicialmente incapaz de qualquer agressividade, o foco do filme vai sendo deslocado aos planos malignos de algumas pessoas encaradas inicialmente como inocentes. Então, a mensagem principal que o filme constrói ao seguir os rastros de sangue e acirrar as animosidades entre os personagens tem a ver com a misoginia de alguém acostumado a comandar sem qualquer restrição. Uma vez que perde o controle sobre sua “posse temporária”, Josh gradativamente se transforma num vilão.

Falando especificamente de Iris. Ela é a protagonista que percorre um caminho de iluminação pelo autoconhecimento. Em princípio, nega a própria natureza, mas paulatinamente assimila as ferramentas que podem fazê-la usufruir do potencial que seu companheiro havia negado a ela. Guardadas todas as devidas proporções e as particularidades dos respectivos cenários, é semelhante em trajetória à Bella Baxter de Pobres Criaturas (2023). Ambas são mulheres profundamente subjugadas aos homens (criadores e “usuários”) que ganham a oportunidade de se emancipar por meio do conhecimento. E, uma vez detentoras da independência ameaçadora aos homens que as preferiam embaladas a vácuo na ignorância e na obediência, as duas têm um crescimento que inevitavelmente passa pelo exercício reativo da violência. Se o longa-metragem de Yorgos Lanthimos recorria a um retro-futurismo para falar desse batismo de sangue pelo qual a sua protagonista passava, Drew Hancock olha para o futuro, não mergulhando tanto (como poderia, é bem verdade) no existencialismo inerente àquilo – até porque, diferentemente de Bella, que tem um caminho mais longo de amadurecimento, Iris precisa da evolução para ontem, pois essa nova condição é uma ferramenta à sobrevivência imediata. Equilibrando bem o drama, a comédia e o horror, Hancock faz um filme em que os subtextos da dependência emocional e da masculinidade tóxica crescem à medida que verdades aparecem e cadáveres são acumulados.

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A Acompanhante Perfeita é às vezes mais propenso a ridicularizar Josh, especialmente enquanto ele assume a postura de um vilão machista, do que a discutir profundamente os assuntos abordados. E não há nada de errado nisso, até porque a proposta narrativa é mesmo utilizar as convenções de alguns gêneros e, em meio a isso, atribuir subtextos a certos comportamentos, algo que torna as ações e reações indicativas e mais interessantes. Por exemplo, essa inteligente inversão de valores, tendo em vista a tradição das ficções científicas apocalípticas nas quais a tecnologia é a grande ameaça. Aqui, por mais que as figuras inumanas tenham as mais ostensivas atitudes hostis, é importante observar a fonte da violência, quem a conjura em prol de intenções sombrias e, no fim das contas, de onde emana a real agressividade. Além disso, há um jogo de aparências e estereótipos localizado em pontos estratégicos da narrativa, vide o russo milionário identificado como mafioso ou ainda o rapaz aparentemente carinhoso que não passa de um egocêntrico capaz de transformar sua carência em trampolim à misoginia. Entre os membros do elenco, o grande destaque é Sophie Thatcher como a garota programada para adorar, impedida de mentir e cuja existência é definida pela submissão, aos poucos empoderada numa jornada de autoconhecimento, aceitação e sobrevivência. Ora frágil, ora com determinação empolgante, Iris sobressai nesse bom sci-fi slasher cheio de homens que creem na onipotência de seus desejos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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