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Sinopse

A viúva Abla dirige uma modesta padaria em sua casa em Casablanca, onde vive com sua filha de oito anos Warda. Sua rotina é interrompida pela chegada de Samia, uma jovem grávida procurando por emprego e moradia. Abla não imaginava que ao deixá-la entrar sua vida mudaria para sempre.

Crítica

Em uma única cena, Samia (Nisrin Erradi) consegue um emprego e o perde. Ela é aceita num salão de cabeleireiros porque se demonstra disponível e pouco exigente. No entanto, é rejeitada segundos mais tarde, quando pede para dormir no estabelecimento que a contrata, mas “sem incomodar os clientes”. Assustada com o pedido, a contratante, fora do enquadramento, a rechaça do local. Conforme Samia se afasta do close-up em que nos foi apresentada, o espectador descobre informações de que não dispunha até então: ela está grávida, prestes a dar à luz, e carrega nos ombros uma grande mala de viagem, sinal de que abandonou a casa. De repente, esta não é apenas uma jovem desempregada, mas uma futura mãe, sem ter onde dormir, e aparentemente, sem família que a acolha.

Os movimentos de atração e repulsa marcam toda a narrativa em Adam, fábula sobre mulheres destinadas a se ajudarem apesar de pertencerem a uma cultura que valoriza a competição feminina. Por mais previsível que seja a aproximação entre Samia e a padeira Abla (Lubna Azabal), desde o instante em que se veem, o roteiro faz questão de cuidar para que este caminho seja gradativo e psicologicamente verossímil. A relação entre as duas mulheres traumatizadas, uma pelo nascimento (a gravidez indesejada), e a outra, pela morte (Abla sofre com a perda do marido), passa pela solidariedade, o desdém com a futura mãe solteira, a rivalidade, a amizade, e mesmo a pulsão homoerótica, até a sugestão de um conceito expandido de família, formado por laços de afinidade, ao invés daqueles de sangue – algo particularmente ousado dentro da cultura marroquina.

O projeto jamais funcionaria sem duas grandes atrizes, capazes de navegar entre a leveza e a gravidade, entre a impulsividade e a moderação. Nisrin Erradi e Lubna Azabal formam uma dupla excepcional, equilibrando-se num complexo jogo cênico. Em certa medida, elas remetem às personagens da peça “A Mais Forte”, de August Strindberg, onde se questiona o controle em situação de conflito: a mais forte é aquela que insulta, diz tudo o que pensa, ou a segunda, que se cala e aguenta estoicamente as agressões? Em Adam, as posições se alternam: ora a carinhosa Samia utiliza recursos brutais para fazer valer seu ponto de vista, ora a ríspida Abla demonstra uma capacidade de compreensão inesperada. Ambas personagens são tridimensionais, dotadas de uma trajetória complexa para um roteiro enxuto. Nenhuma delas se torna alvo de julgamento moral – o filme não se interessa pelo contexto que levou à gravidez de Samia fora do casamento, por exemplo.

O olhar cúmplice de Adam se traduz em composições clássicas, porém muito bem pensadas pela diretora Maryam Touzani. Trabalha-se bastante com close-ups nos rostos das expressivas atrizes. Em paralelo, sempre que necessário, a cineasta explora os sons fora de quadro e as luzes que invadem a pequena padaria da protagonista. As vozes de homens passando pela rua e o barulho de uma festividade local são fundamentais para estabelecer uma separação de espaços, representativa da hierarquia social: as mulheres são reservadas à esfera doméstica, enquanto os homens ocupam o espaço público; as mulheres acumulam funções familiares e de trabalho, enquanto os homens se limitam às atividades profissionais. A pressão do olhar dos vizinhos é retratada de maneira sutil, porém notável dentro da trama. Aos poucos, a direção começa a abrir os enquadramentos, deixando as duas mulheres respirarem, olharem seus próprios corpos, desamarrarem os cabelos, desafiarem os pretendentes ou ofensores nas ruas. O espaço simbólico do balcão, separando a casa da rua, e o privado do público, é muito bem explorado pelo olhar da cineasta.

Devido aos traumas das personagens – o que inclui a condição de órfã da pequena Warda, filha de Abla – o resultado poderia se traduzir em melodrama. No entanto, Touzani evita associar a feminilidade ao ideal de delicadeza, preferindo o caráter combativo. Ao final de cada cena emotiva, a montagem oferece um corte abrupto, saltando para horas mais tarde, quando as dores foram assimiladas. “A morte não pertence às mulheres”, contesta Abla sobre a dificuldade de fazer o luto, ao que Samia acrescenta: “Nada pertence às mulheres”. A emoção deste belo filme nasce menos do enfrentamento às dificuldades do que à superação das mesmas. Estas mulheres são inteligentes, ativas, capazes de ótima percepção sobre seus estados. O humanismo se estende até a última cena, um aceno ao futuro ainda doloroso, porém corajoso para ambas. Poucas ficções misturam de maneira tão orgânica o drama familiar e a crônica social, expondo o ponto de vista progressista através de um comovente estudo de personagens.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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