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Sinopse

Numa profunda crise criativa ao ser incumbido de adaptar um livro para o cinema, um roteirista recorre ao seu irmão gêmeo para encarar a empreitada.

Crítica

Adaptação é um filme genial, e talvez o melhor dele seja o modo inesperado como se apresenta. Sua originalidade é impressionante, com um roteiro que atinge níveis de perfeição ao brincar com vários padrões pré-estabelecidos sobre o assunto em questão dentro de um sistema de meta-linguagem: o que é discutido em cena logo vira parte da ação, num modo contínuo que exige total atenção do espectador para não deixar passar nenhum momento importante. A história central, aqui, é construída nos detalhes. Mérito evidente que deve ser compartilhado entre o texto brilhante de Charlie Kaufman, pela mão segura do diretor Spike Jonze e pelo elenco liderado por Nicolas Cage, Meryl Streep e Chris Cooper (vencedor do Oscar por este trabalho, sendo que os três foram indicados).

Charlie Kaufman é um roteirista de sucesso, e após ser indicado ao prêmio máximo do  cinema por Quero Ser John Malkovich (1999) e por Adaptação, ganharia finalmente a cobiçada estatueta dourada pelo emocionante Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004). Com o nome em alta no início dos anos 2000, foi-lhe entregue um exemplar do livro O Ladrão de Orquídeas, escrito pela jornalista novaiorquina Susan Orlean. A ideia era que ele o adaptasse para uma versão cinematográfica do mesmo. O que à princípio seria uma tarefa relativamente fácil, se tornou um verdadeiro inferno. Kaufman teve um “bloqueio”, não sabia por onde começar, ficou perdido sem conseguir decidir que rumo tomar nesse novo desafio. Paralelamente a isso, seu irmão, Donald Kaufman, resolveu largar uma vida de atividades inconstantes e se tornar um roteirista ele próprio, seguindo o exemplo do irmão. Para tanto, começou a tomar aulas com um famoso profissional da área, Robert McKee. Ao contrário do drama existencialista do irmão, Donald se aventura por uma história mais convencional de ação, recheando sua história com todos os clichês contumazes do gênero. Dois conflitos surgem, então, para Charles: como construir sua história, e ainda ter que conviver com a súbita opção profissional do irmão?

Escrever O Ladrão de Orquídeas não foi tarefa fácil para Susan Orlean. Tendo como principal foco a vida do orquidário John Laroche, ela deu início a sua obra primeiro como uma reportagem para a revista New Yorker. Com o reconhecimento, veio a proposta para transformar o material em livro, e, por conseguinte, em cinema. Para Orlean isso representou a consagração de uma carreira extensa que finalmente chegava ao seu ápice. A questão é que para ela este era mais do que apenas um livro: foi um marco em sua vida, e o envolvimento dela com seu biografado foi maior e mais significativo do que ela própria gostaria de admitir – e do que seria necessário numa relação jornalística. Orlean está numa encruzilhada: como seguir adiante após viver tais experiências?

O que foi colocado nos dois parágrafos acima é exatamente o que se assiste em Adaptação. Ou, como se poderia supor, é o que se sucedeu na vida real. Ou ainda, é uma versão de fatos verídicos versados para um universo ficcionalizado, após serem filtrados pela mente inventiva e totalmente alucinada de Charlie Kaukman e de seu irmão Donald (um personagem ficcional que, no entanto, assina a autoria desse roteiro ao lado de Charlie, se tornando o primeiro ser imaginário de todos os tempos e ser indicado ao Oscar). O filme, portanto, registra o processo enfrentado pelo roteirista para adaptar o livro de Susan para o cinema, entremeado pelo registro do que a própria Susan enfrenta para escrever a mesma obra. São duas histórias paralelas que correm de modo contínuo, apesar de serem distantes em tempo e espaço. Dado que, no entanto, não irá importar muito para que cheguem juntas a um mesmo ponto no final.

Nicolas Cage defende com gosto um dos melhores papeis de sua carreira como os irmãos gêmeos Charlie e Donald Kaufman. Revelando-se capaz de ir um passo além do virtuosismo mostrado em Despedida em Las Vegas (1995), Cage consegue criar dois personagens distintos e, ao mesmo tempo, absurdamente similares (como dois irmãos devem ser), em uma performance impressionante. Já John Laroche ganha vida através de Chris Cooper, um eterno coadjuvante que finalmente recebe uma oportunidade à altura de seu talento. Cooper domina grande parte da trama, numa interpretação que só não é maior por ter que dividir quase todas as suas cenas com a maior atriz viva do cinema norte-americano, Meryl Streep. Ela é Susan Orlean (a própria diz ter ficado em estado de graça ao saber que Streep iria interpretá-la na tela grande), e é a responsável pelos momentos mais divertidos e tocantes da narrativa. Seu brilhantismo se revela em situações aparentemente comuns, como o encontro com um índio no orquidário, ou a ida ao banheiro durante um jantar entre amigos, ou em passagens que se tornaram icônicas, como a celebrada cena do telefone. Meryl é daquelas atrizes que conseguem transmitir um universo único de informações e sentimentos com apenas uma troca de olhares. Se sua interpretação arrebatadora em As Horas (2002), lançado no mesmo ano, era mais do que merecedora de qualquer reverência, aqui ela comprova, mais uma vez, ter o domínio absoluto da situação quando em cena.

Adaptação é a reunião de um conjunto de fatores extremamente positivos. Um elenco extremamente competente e em sintonia com um roteiro excepcional só encontra contraponto à altura na direção ousada e original de Spike Jonze, o mesmo do citado Quero Ser John Malkovich (aliás, a ação dessa vez começa ainda durante as filmagens desse longa anterior, sendo que algumas cenas com John Cusack, Catherine Keener e John Malkovich são mostradas nesse novo projeto). Uma história realmente inovadora, que surpreende por sua condução aparentemente arbitrária, inclusive dentro dos seus próprios padrões. Para tanto, basta reparar no final inesperado, em que tudo que é afirmado anteriormente vira contradição, justamente porque à certa altura da história o condutor muda – e, para tanto, é alterado também o ponto de vista de quem a escreve. Além de ser uma divertida e curiosa brincadeira, é também uma aula de cinema que digna de aplausos e admiração.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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