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Sinopse

Depois de descobrir que está seriamente doente, Suze decide procurar a criança que foi obrigada a abandonar quando tinha 15 anos. Sua busca a coloca em contato com duas figuras que vão ajudá-la nessa jornada espetacular.  

Crítica

Parece que não deveríamos estar rindo destas imagens. Um homem tenta cometer suicídio com uma enorme espingarda, mas erra a mira; uma cabeleireira descobre uma doença terminal causada por excesso de spray; um homem cego é contratado para trabalhar nos arquivos de uma empresa, mas no escuro, porque ninguém visita o lugar. Há violentos acidentes de carro, pessoas pisoteadas, rapazes românticos que despertam risos por seus poemas; brilhantes cientistas com Parkinson; médicos sem qualquer tato no tratamento dos pacientes fragilizados. Em linhas gerais, Adeus, Idiotas (2020) aborda uma espiral de tragédias. Para a nossa surpresa, o resultado é hilário, justamente pelo acúmulo e pela consciência da improbabilidade de tantas mortes e quase-mortes. Ao tentar se matar, Jean-Baptiste Cuchas (Albert Dupontel) acaba ferindo seu desafeto na empresa. Ao levar consigo o arquivista, na busca pelo filho que abandonou quando era adolescente, Suze Trappet (Virginie Efira) acaba fazendo com que o homem cego dirija um carro. Um conflito desencadeia o caos no momento seguinte, que produz a próxima catástrofe, e assim por diante. O roteiro lembra os dominós enfileirados, prestes a desabar em cadeia a partir do primeiro movimento. O ritmo jamais desacelera após a excelente sequência de abertura.

Como convém ao humor do absurdo, o cineasta e roteirista Albert Dupontel concebe um universo de pessoas comuns cercadas por um mosaico de malucos. Suze recebe a notícia de sua doença irreversível do modo menos gentil possível; o diretor da empresa onde trabalha Cuchas nunca decora seu nome; o médico do médico ostenta conhecimentos nulos de diagnóstico e medicamentos. Neste caso, o mundo se encontra fora do lugar, ao invés dos pobres protagonistas que tentam se adequar às adversidades. Isso impede que o olhar da direção ridicularize estas figuras: o autor sabe bem de onde extrair humor, e como fazê-lo de modo eticamente responsável. Ao longo da trama, as minorias representada pelos anti-heróis (o homem deficiente, o colega nerd e excluído, a funcionária pobre e rejeitada) descobrem sua força juntos, combatendo o sistema insano ao invés de um adversário preciso. O texto destaca a perversidade do meio empresarial, da burocracia francesa e do conservadorismo religioso. Cuchas, Suze e Serge Blin (Nicolas Marié) já foram vítimas, mas se encontram num instante posterior, quando buscam uma saída extrema e violenta aos códigos sociais. Nutre-se respeito ao invés de piedade pelo trio quixotesco.

Caso o criador se ativesse às esquisitices pelo prazer de fazê-lo, ou seja, pela simples diversão de se separar do real, chegaria a um resultado infantilizado, de valor retórico. Ora, o longa-metragem jamais esconde o teor amargo de seu percurso, e efetua um trabalho brilhante de construção psicológica. Na busca pelo filho biológico, Suze encontra um filho postiço, precisando de seus cuidados, em plena resolução do Complexo de Édipo (o arquivista que deseja matar o pai simbólico para ter a mãe para si). Apesar da tendência suicida, JB é conduzido pelas circunstâncias a sobreviver, não na forma de um arrependimento moralista, apenas de uma conjuntura desfavorável à morte. Na reta final, uma figura nova (Bastien Ughetto) permite a ambos resolverem pendências e cicatrizes. Nota-se um caráter terapêutico na jornada kafkaiana de confronto aos traumas do passado (vide Serge Blin e a polícia), ainda que para isso precisem destruir um prédio, quebrar carros e provocar as forças da ordem — nada muito diferente do que fazem os super-heróis no cinema hollywoodiano, afinal. Dupontel cria as condições necessárias, na estrutura próxima ao sonho/pesadelo, para que os novos amigos se transformem radicalmente no espaço de algumas horas, de modo que o progresso de um implique na evolução do outro.

Adeus, Idiotas desenvolve esta premissa num estilo apenas levemente apartado do real — semelhante ao realismo fantástico. As escadas circulares do setor de arquivos são infinitas, os elevadores dançam num sobe e desce ininterrupto, as cores chamam atenção (a única roupa vermelha de Suze), ainda que de modo naturalista. Já as cenas de ação possuem a direção típica de um drama convencional, apesar das consequências possíveis somente à comédia. O diretor navega com desenvoltura impressionante entre a contemporaneidade opressora e o carrossel de luzes, cores e magias. Sua principal ferramenta para esta travessia se encontra na diferença de perspectivas: Suze, JB e Serge enxergam a estranheza da sociedade, mas para os verdadeiros loucos, aqueles acontecimentos são comuns. Posto que o espectador observa as ações pelos olhos do trio principal, embarcamos nas desventuras em série com o devido senso de estranhamento. O diretor não precisa fazer chacota dos eventos pelo enquadramento, a luz nem os diálogos. As circunstâncias surpreendem por si próprias, ao inserirem personagens dramáticos num mundo de clowns. Dupontel compreende à perfeição onde se encontra a fonte de seu humor, e nunca se rende à armadilha de saturar o roteiro de piadas ou quiproquós para fazer rir a qualquer preço.  

Por fim, este raro projeto comprova o talento do cineasta para conduzir o espectador através de uma aventura psicológica de risos e choros, passando pela ação e o suspense, sem romper com a coesão do conjunto. É um prazer se deparar com humor de tamanha inteligência, comprovando pela enésima vez a capacidade de criar personagens complexos e situações politicamente relevantes para a comédia popular, ao invés de figuras patéticas em interações previsíveis. Em outras palavras, não é preciso nivelar o conteúdo por baixo para torná-lo acessível: este projeto superou os 2 milhões de espectadores na França, em plena pandemia de Covid-19. Dupontel compreende como ninguém o potencial subversivo das risadas: no fundo, ri-se de si mesmo, da nossa identificação com os seres fracassados e apaixonados. Enquanto isso, desconstrói o tabu da discussão sobre suicídio, depressão, gravidez na adolescência, deficiência física, machismo e inserção profissional de minorias sociais — temas graves por baixo das gags com sobrenomes errados e bordões inesperados (“Um deficiente não vai para a prisão!”). No fundo, este universo estranho representa um exagero dos nossos, uma caricatura da nossa sociedade contemporânea plena de barbaridades em si própria. Além de constituir uma belíssima obra de amores e amizades, o filme também oferece uma valiosa discussão política.

Filme visto no 12º Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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