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Crítica


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Sinopse

Mesmo inseparáveis, Emma e Anaïs têm várias questões propensas a distanciá-las. Dos 13 anos à maioridade, elas experimentam uma onda de novidades e transformações inerentes à antessala da vida adulta.

Crítica

Emma e Anaïs têm treze anos de idade quando o diretor Sébastien Lifshitz começa a filmá-las. A escolha destas protagonistas revela a preocupação pela representatividade: trata-se de uma garota de classe média, e outra proveniente de um lar humilde; uma extrovertida, a outra tímida; uma delas tendo como único referencial familiar a mãe, e a segunda vivendo num núcleo com pai e irmãos menores, incluindo um garoto com deficiência física. Elas se encontram longe das grandes cidades, e apresentam quadros regulares de aprendizado na escola – são alunas com notas razoáveis, de pouco destaque positivo ou negativo. Adolescentes (2020) parte da vontade de ilustrar uma ideia do “francês médio”, habitante dos vilarejos interioranos, com foco nas mulheres e nas classes menos favorecidas. Nota-se a vontade simultânea de ser universal (retratando conflitos da puberdade, do crescimento, dos relacionamentos amorosos) e específico à França contemporânea, que acaba de atravessar atentados terroristas graves e quase sucumbiu ao discurso da extrema-direita nas eleições presidenciais.

O projeto se torna ao mesmo tempo singelo e ambicioso em sua abordagem. O cineasta acompanha a vida das meninas, com a mínima interferência possível, entre as idades de 13 e 18 anos. Ele comparece à cidade durante dois ou três dias por vez, parte por meses, e depois retorna. Neste caso, o cinema se presta a um jogo interessantíssimo: ele perde controle sobre os rumos da narrativa. Os documentários podem deter maior ou menor grau de ficcionalização, ou de domínio sobre os acontecimentos. Lifshitz abraça o acaso, dispondo-se a filmar eventos marcantes para as duas, ou talvez cenas de completa banalidade. Em paralelo, ele pode se encontrar ausente enquanto fatos importantes ocorrem na trajetória das meninas. Algumas passagens foram escolhidas (o vestibular, a festa de Ano Novo, a visita à mãe no hospital), no entanto, o filme permite o registro de conversas simples entre as amigas sobre as provas da escola ou os meninos mais bonitos da turma. O acaso e o banal se tornam mais do que aceitáveis: eles se convertem num propósito assumido. Cabe à montagem, anos após o início dos registros, traçar alguma forma de narrativa entre os materiais.

Adolescentes possui impressionante senso de prioridades e de escolhas, algo fundamental para um documentário receptivo aos imprevistos. A câmera está muito próxima do rosto e dos corpos das personagens, porém sem despertar a impressão de que os comportamentos tenham sido afetados pelo dispositivo cinematográfico (elas não aparentam atuar para a câmera). Existe uma proximidade evidente entre o cineasta e as jovens, razão pela qual desenvolvem conversas íntimas enquanto estão sendo gravadas. A propósito de intimidade, o diretor sabe quando trabalhar na chave da sugestão (a perda da virgindade, a casa incendiada, a mãe em estado de coma) e quanto revelar conversas delicadas (as discussões sobre o futuro profissional e sobre sair de casa). O cinema se encontra próximo do material humano, sem explorá-lo para nosso entretenimento ou curiosidade. Há evidente respeito pelas duas, e também por suas dores e angústias. Elas são filmadas dormindo e comendo, estudando e brigando. Cabe à excelente montagem encontrar relações entre as imagens privadas e as imagens públicas: os atentados terroristas contra o Charlie Hebdo são costurados junto à tragédia na família de uma garota; o acidente num jogo de videogame se aproxima da cena da casa incendiada. Logo após admirar colegas andando de skate, a montagem revela a garota treinando o skate sozinha, em casa. Talvez os treinos tenham começado vários meses depois, no entanto, o filme estabelece suas próprias relações de causa e consequência.

Infelizmente, a narrativa se enfraquece à medida que as amigas se afastam. Este era um risco possível dentro do projeto, assumido pelo diretor ao prosseguir comas duas histórias separadamente. O documentário se torna mais potente no encontro entre as protagonistas, quando as fortes personalidades se chocam no pátio da escola ou nas praças. O afastamento progressivo faz com que atravessem conflitos muito diferentes – dificuldades financeiras e traumas graves para uma, pequenas disputas diárias com a mãe para a outra, deixando ao filme a difícil tarefa de equilibrá-los em termos de importância. A reunião orquestrada pela produção resulta num epílogo competente, ainda que artificial em virtude dos caminhos distintos que preferem seguir. Talvez o principal interesse desta experiência decorra não das garotas, mas do gesto cinematográfico de um diretor disposto a filmar o que vier pela frente, fazendo do tempo o verdadeiro material de trabalho. O senso de finalidade (as personagens sendo conduzidas para um término específico) se dissipa, assim como a noção de mensagem a transmitir. Anaïs e Emma fogem à posição de porta-vozes de um grupo social.

Por fim, a criação aposta no valor dos olhares, nos silêncios e também na possibilidade de nada relevante acontecer. O filme se torna uma performance do cinema confrontado ao decalque da representação. O roteiro fluido permite instantes de humor para atenuar o peso das obrigações, além de ironias visuais nos pequenos gestos de afeto (o dentista que enxuga a lágrima de sua paciente com o aparelhinho de sugar saliva). As comparações com Boyhood: Da Infância à Juventude (2014), de Richard Linklater, eram inevitáveis, e de fato inundaram os textos críticos a respeito do filme francês. Entretanto, existe um abismo separando a ficção aberta ao cotidiano, proposta pelo norte-americano, e a estética documental escolhida por Lifshitz. A filmagem ao longo dos anos aumenta a possibilidade de imprevistos para ambos os casos, no entanto, um roteiro fechado, incluindo atrizes experientes como Patricia Arquette, se distancia da sensação crua de captar pequenas brechas da vida de anônimos. Na época em que se valoriza o agora (as selfies, as fotos de redes sociais, os fenômenos instantâneos da Internet), Adolescentes acredita na beleza da fronteira entre transformação e perenidade – em outras palavras, no estudo do tempo que passa. O resultado se torna o avesso da urgência, em prol de um humanismo pleno de afeto e cumplicidade.

Filme visto online no 11º MyFrenchFilmFestival, em fevereiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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