Sinopse
Ao refletir sobre as lembranças de um feriado passado com o pai há 20 anos, Sophie tenta se reconciliar com esse homem que ela percebe não conhecer completamente.
Crítica
O que permanece, quando tudo o que já foi não mais existe? Relações, sentimentos, frustrações, vontades, anseios ou indignações, momentos que vão e desaparecem com o tempo, esmaecendo suas tintas e transformando percepções. É do material com o qual é feito o tecido da memória que se compõe a trama de Aftersun, longa escrito e dirigido por Charlotte Wells. O título, bastante apropriado, pode ser lido e interpretado sob duas formas: tanto é o que veio depois do sol, com o fim das férias, com o choque de realidade e tudo o que mudou a partir da conclusão de um período idealizado, mas não por isso menos concreto. Mas também é sobre o resgate daquilo que se deu até essa partida, o desfecho angustiado que tanto cala quanto afasta, eliminando resquícios de um querer mais potente e ensurdecedor. É sobre o que foi e o que não mais se tem, sobre a saudade que se combina com a fantasia, pela lembrança perdida que não mais se recupera, mas, não por isso, deixa de ter seu valor. Da mesma forma, tem-se aqui um filme hábil em trabalhar com tais elementos, sem imposição ou didatismo, mas através de delicados quadros e sutis composições.
Ao se deparar com uma gravação antiga, de filmes caseiros há muito esquecidos, Sophie (Celia Rowlson-Hall, de Vox Lux: O Preço da Fama, 2018) permite-se perder em si mesma na busca por uma criança que ela não mais é, mas que, indubitavelmente, um dia foi. Anos atrás, durante algumas semanas de verão, ela e o pai foram passar alguns dias de descanso na Turquia, em um hotel de veraneio. Entre passeios programados e horas ao redor da piscina, os dois vão se conhecendo melhor e, com isso, recuperando uma antiga familiaridade que abrirá portas de acesso à ambos também pela audiência, que pela estrutura imposta se verá convidada a fazer parte dessa dupla de muitos. O desconforto inicial de um com o outro, a viagem quase improvisada, a chegada ao hotel e o atendimento que não era exatamente como o esperado, a solução de última hora, as pequenas manias de cada um e a proximidade que aos poucos irá se formar. Os laços existem. Precisam, apenas, serem reatados.
Nada de muito espetacular acontece durante as quase duas horas de Aftersun. Quer dizer, não de encher os olhos e atordoar os sentidos como em uma aventura escapista de super-herói. Muito pelo contrário, aliás. Por aqui, as coisas se dão nos detalhes. É em cada pequeno gesto, no cuidado que se percebe, na atenção oferecida aos poucos, que a diferença começa a se manifestar. A mudança que um vai, lentamente, provocando no outro. A intimidade que aos poucos se elabora, um entendimento maior que vai além da puxada de lençol, tarde da noite, ou do convite para dividir uma sessão de karaokê. Está no riso sem necessidade de palavras, no mergulho despreocupado e, ao mesmo tempo, cuidadoso, em conceder o tempo necessário para que o mau-humor se dissipe e a boa vontade seja restabelecida. Está no dar, mais até no que no receber, a relevância do que estão experimentando juntos.
Se o texto de Wells, assim como sua câmera, é preciso em buscar tais sentimentos, se faz necessário também reconhecer a impressionante conexão que se estabelece entre os dois protagonistas. Em sua versão infantil, Sophie é vivida por Frankie Corio, uma verdadeira revelação. A menina de apenas 11 anos que já se vê como uma mulher de vasta jornada (“nossa, isso aconteceu há muito tempo, quando eu tinha... sei lá... uns 7 anos”) é pura emoção e sensibilidade, ansiando por essa ligação paterna na mesma medida em que se esforça para se fazer ouvir como uma igual frente ao adulto que se dispôs a estar consigo. Eventos até mesmo previsíveis, como a descoberta do primeiro amor, a relutância que magoa, as palavras soltas que não mais podem ser recuperadas, tudo isso por ela atravessa sem peso ou culpa, mas como parte natural de um processo de amadurecimento – algo que a jovem intérprete entrega com a competência de uma profissional que há muito se encontra nessa estrada (por mais que esse seja seu trabalho de estreia).
Da mesma forma, Paul Mescal é um grande – e insuspeito – acerto. Quem poderia imaginar que o rapaz revelado como o adolescente apaixonado da minissérie Normal People (2020) – indicado ao Emmy e vencedor do Bafta por esse desempenho – poderia, em tão pouco tempo, se sair melhor do que o esperado como um pai perdido no próprio círculo familiar, ciente de que falhou com a mulher que amou e que agora dedica suas ações ao resgate dessa menina que ambos geraram? Ele consegue, por vezes, ser tão infantil quanto ela, ao mesmo tempo em que, quando necessário, a eleva ao seu nível, em discussões de forte intensidade. Aftersun é a soma de muitos méritos que se mostra acima dos valores individuais reunidos, uma felicidade que poucas vezes se dá de forma tão precisa. Um filme a ser sentido, muito mais do que lido de forma racional ou matemática. Está na assimilação destes eventos entre esses dois o maior feito de uma obra que se abre na mesma medida em que exige, partindo do pouco para propor algo tão revelador quanto inédito, aquilo de único que cada um tem em si, e a decisão de compartilhar o que lhe é raro com o mundo.
Filme visto durante a 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
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