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Crítica


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Sinopse

Artistas são convidados a se expressarem improvisada e livremente diante do dispositivo cinematográfico.

Crítica

“Eu queria que tu tentasse se conectar com esse tempo que é agora, nessa caixa, nesse chão, nesse tempo histórico que a gente vive”. O pedido da diretora Déa Ferraz a uma dezena de artistas é bastante amplo. Ela solicita que expressem seus sentimentos em relação a este período específico, no caso, os meses que sucederam à eleição de Jair Bolsonaro. Como estes corpos negros, livres, transexuais e/ou periféricos expressariam a surpresa, ira ou desolação diante dos rumos do país? O generoso filme permite que dancem, cantem, pintem quadros, toquem tambor, efetuem malabarismos como quiserem. A cineasta opta pelo olhar frontal em relação ao palco escuro de fundo infinito (o conceito da “caixa” que tanto interessa à criadora), em plano aberto, para que as movimentações não sejam prejudicadas pela limitação do plano próximo. Como os gestos se elaboram na espontaneidade, a câmera precisa estar pronta para o que acontecer à sua frente. Então, o olhar da direção observa e admira o que tenham a oferecer, da maneira mais plácida possível: com planos fixos, centralizados, distanciados, sob um foco de luz teatral vindo do alto. Não há uma troca de ideias propriamente dita: Ferraz efetua um comando amplo, os artistas o cumprem, e o dispositivo se encerra por aí, sem que a direção reaja, ao seu turno, às performances.

A simplicidade da iniciativa constitui ao mesmo tempo a franqueza, a humildade e também a limitação do filme. Eventuais rupturas no ritmo narrativo poderiam provocar transformações, porém soam como alarmes falsos: o comando “Agora!”, disparado pela diretora fora de quadro, faz com que os artistas congelem o movimento. Neste instante, as funções se invertem: depois de tantos corpos móveis face à câmera fixa, desta vez é a câmera móvel que perscruta os corpos fixos. Mesmo assim, o pedido se reproduz poucas vezes, sendo logo abandonado pelo roteiro sem surtir efeito nas performances a seguir. Um close-up inesperado surge aos 49 minutos de projeção, após tantos planos de conjunto, à distância, mas o recurso tampouco passa a ser explorado novamente, constituindo a exceção que confirma a regra. Um artista se expressa sobre um rolo de plástico bolha, produzindo novos sons, sugerindo texturas, aludindo a uma impressão de esmagamento e fragilidade pertinente à representação dos sentimentos. Ora, os demais artistas não trazem outros objetos e elementos capazes de dialogar com esta cena. De modo geral, os corpos agonizantes, exasperados ou melancólicos respondem metaforicamente ao sentimento de tristeza a respeito de um novo Brasil liderado pela extrema-direita.

Uma artista discorre brevemente sobre sua condição de mulher negra e periférica nesse contexto, mas as entrevistas tampouco se transformam num recurso recorrente. Há uma dispersão de ideias, demonstrando certa dificuldade em determinar a coerência da montagem para além da rigidez do palco preto, do fundo preto, das roupas pretas, e do silêncio sepulcral que domina a maioria das apresentações. Que atritos estes artistas poderiam provocar quando se encontrassem, lado a lado, dentro da caixa? Como reagiriam a estímulos diferentes, mais precisos, durante a apresentação? O que fariam caso a caixa mudasse de cor, de dimensões, de iluminação? Que modificações o tambor provocaria na performance do rapaz com o plástico bolha, ou então na garota que reivindica o direito à política da delicadeza? Estes artistas dotados de propostas fortes se convertem em núcleos isolados, ao invés de refletirem um senso de união, de comunidade, de conjunção entre tantas artes. O afastamento seria uma reflexão direta deste país em crise de identidade? De qualquer modo, caberia à direção explorar de maneira mais ousada a imagem dos corpos, ao invés de depender do valor intrínseco expresso por eles. Existe uma diferença fundamental entre apreciar a dança de um artista e apreciar a imagem da dança de um artista.

De fato, a imagem de Agora acompanha os artistas de modo apenas funcional, seja quando congelam, ou quando saltam e exploram o solo. Não aparenta haver um conceito prévio em termos de potencialidade dos enquadramentos, da profundidade de campo, da proximidade em relação aos personagens. A câmera poderia efetuar uma coreografia análoga àquela dos dançarinos, por exemplo. Poderia sugerir o vazio dos corpos que fogem ao enquadramento, ou buscar a máxima expressividade dos olhos, dos dedos das mãos e dos pés, dos músculos. (O plano final, o melhor de todo o projeto, vai nessa direção). Poderia dissociar o som dos cantos e aplicá-lo a outros corpos, ou então sobrepor cantos diferentes e construir sua própria melodia através da montagem. Haveria inúmeras maneiras de explorar a entrega tão comprometida destas pessoas com o cinema. Que belo jogo a linguagem poderia efetuar com a pintura, com o tambor frenético, com o homem acrobata! Entretanto, a câmera se contenta em observá-los, em dar voz e espaço a eles. Limitações à parte, resta o testemunho simples, porém consciente de seu alcance, a respeito dos desafios de ser artista e livre num governo que teme os artistas e a liberdade. A decisão de elaborar um discurso político através do movimento, do som e do processo de criação artística ao vivo, diante dos nossos olhos, sem a necessidade de frases de efeito, constitui em si um ato de ousadia por parte da produção.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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