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Crítica


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Sinopse

Ex-policial, o investigador Lucio Gualtieri é contratado para solucionar um crime na Tríplice Fronteira. Chegando lá, se vê envolvido numa trama de assassinatos e tráfico de menores. Será que ele conseguirá sobreviver nesse espaço?

Crítica

É uma convenção do noir o fato do protagonista-detetive enfrentar os próprios demônios à medida que mergulha numa investigação semelhante a um labirinto intransponível. Em Águas Selvagens, coprodução Argentina/Brasil baseada no livro El Muertito, de Oscar Tabernise, Lucio Gualtieri (Roberto Birindelli) é um ex-policial argentino contratado para desvendar os mistérios em torno do cadáver do figurão encontrado castrado na hostil Tríplice Fronteira. Entre o farejo de uma pista e outra, ele dialoga com uma adolescente via internet, fazendo passar-se por alguém de sua idade para conseguir atenção. A ideia do cineasta Roly Santos é criar uma rubrica de ambiguidade, sobretudo ao deflagrar o esquema de pedofilia que se desenvolve no submundo dessa cidadezinha recheada de segredos e interdições. Todavia, falta consistência à encenação para que isso aconteça, bem como a fim de que a conjuntura seja desdobrada quando a bruta verdade vem à tona. Não é suficiente a apresentação dos rompantes de autocomiseração do ex-policial para defini-lo como um sujeito complexo e multifacetado.

Desde o princípio, salta aos olhos o desejo de filiação ao gênero (muitos o consideram um estilo) cujo apogeu aconteceu nos anos 1930 e 1940 nos Estados Unidos. A trama de Águas Selvagens está repleta de figuras condicionadas por suas naturezas arquetípicas. Da femme fatale Rita (Mayana Neiva), passando pelo contratante Dalmácio (Luiz Guilerme), o distintivo corrupto Fabro (Daniel Valenzuela), o “mordomo” obsessivo Fabián (Juan Manuel Tellategui), a prostituta Debora (Leona Cavalli), até chegar à jovem Blanca (Allana Lopes), ninfeta que enreda o protagonista num jogo emocional supostamente denso. Esses personagens se relacionam de modo artificial, com elos sendo feitos e desfeitos sem as ações deixem rastros suficientemente sólidos. Também atendendo a outro elemento caro ao cânone do noir, Gualtieri é um homem tão fraturado quanto sexualmente irresistível. Depois da noite de amor com uma menor de idade – fato nunca problematizado, algo bastante absurdo quando a própria trama se fundamenta em carteis de exploração infantil –, ele engata a tarde tórrida de amor com outra.

Roly Santos ignora qualquer observação mais densa e profunda sobre o caráter contraditório dessa atuação específica de Gualtieri com a camareira que assume ter 16 anos de idade, assim maquiando as ambivalências de seus comportamentos. O detetive se envolve igualmente de maneira leviana com Rita, a começar pela cena desajeitada, com direito a diálogo supostamente sarcástico antecedendo uma transa visualmente cafona, com as luzes banhando os corpos e uma música grandiloquente tentando elevar a carga erótica do momento. Aliás, a trilha sonora de Águas Selvagens, a cargo de Edu Zvetelman, em diversos instantes surge como uma intrusa mal quista, ora se esforçando para pontuar sensações a serem transmitidas ao espectador, ora sabotando o que, talvez, o silêncio poderia potencializar. Some-se a isso a pouca determinação do cineasta para criar um ambiente efetivamente tenso. A Tríplice Fronteira, um vértice convulsionado entre Brasil, Argentina e Paraguai, aparece neste filme como um terreno destituído de personalidade. E como faz falta a construção do caos quase inerente àquele lugar.

No que diz respeito estritamente aos discursos alimentando a investigação principal, Águas Selvagens passa perigosamente por algumas relativizações. Um bom exemplo disso é a citada primeira vez dos personagens de Roberto Birindelli e Mayana Neiva. Ela acaba de testemunhar uma menor de idade saindo do quarto dele, ensaia uma reprimenda com jeito de desculpa para flertar e, logo depois, os dois são vistos engalfinhados na cama numa coreografia erótica. Além da questão do envolvimento abrupto, sem ao menos uma noção de urgência que pudesse embasa-la, prevalece a falta de um olhar crítico à circunstância com a menor de idade que até poderia ser normalizada pelo investigador e a mulher desnorteada, mas em momento nenhum pelo filme. Não se trata de simplesmente julgar as condutas, mas de entende-las a partir de um prisma mais consciente quanto à lógica da pedofilia que motiva todos os conflitos. Também falta ater-se devidamente à decisão do protagonista de levar a adolescente. É obviamente uma substituição torta da filha, mas engatilhada pelo sexo, o que a torna, no mínimo, controversa.

Águas Selvagens é prejudicado pela soma de engrenagens postiças. Falta voltagem e adrenalina nesse quebra-cabeça que organiza peças de forma burocrática, aos trancos e barrancos. Gestos abruptos, reviravoltas demasiadamente telegrafadas, olhares pretensamente ameaçadores, a opacidade da bruma que recai sobre o protagonista e quem o circunda são indícios da fragilidade desse longa quase todo falado em espanhol, mas filmado no Brasil. A crença no morto que atende pedidos dos devotos é explorada tão rapidamente que não passa de uma nota de rodapé. As motivações da mãe desesperada, dessa gente levada a vender os filhos em virtude da impossibilidade de cria-lo, não passa de desculpa para justificar reações diretas e violentas. Roly Santos sabota as potencialidades desse neo-noir, deixando o elenco à mercê da sua falta de habilidade para engendrar circunstâncias que poderiam formar um painel instigante. Nesse percurso errático, Gualtieri não cansa de desdizer-se. É como se o diretor ignorasse que cada passo dado, seja às reparações ou a fim de cumprir a nebulosa missão, é um gesto mobilizador.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
2
Francisco Carbone
1
MÉDIA
1.5

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