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Sinopse

Delia é uma mulher que vive na Itália imersa no pós-Segunda Guerra Mundial. Dividida entre o otimismo da libertação e as misérias cotidianas, ela enfrenta o autoritarismo do marido e encontra consolo na companhia de sua amiga Marisa.

Crítica

Um dos principais movimentos de vanguarda do cinema no século 20, o Neorrealismo Italiano nasceu das contingências do pós-Segunda Guerra Mundial num país oficialmente integrante do chamado Eixo, ou seja, assim como o Japão, aliado militar da Alemanha nazista. Mergulhada no fascismo desde a década de 1920, a milenar nação europeia vivia convulsões internas há décadas, inclusive por conta das forças que resistiam bravamente contra o autoritarismo do regime vigente. Cinematograficamente, tudo mudou depois de Roma: Cidade Aberta (1945), retrato doloroso da ocupação alemã em Roma pelas lentes de Roberto Rossellini, então novato que seria elevado à categoria de mestre. A câmera de teor documental quebrava os pactos com a ilusão e capturava ficção e realidade se interligando, assim causando abalos sísmicos na estética da Sétima Arte. Algo que abriu caminho a outras revoluções. Ainda Temos o Amanhã se passa em 1946, quando a Itália tentava se reerguer e o cinema local escalava rumo a uma de suas mais bem-sucedidas fases. Estreia da atriz Paola Cortellesi como diretora de longas-metragens, ele é ao mesmo tempo uma homenagem poética ao Neorrealismo, vide a abordagem em preto e branco da vida sofrida da população pós-conflito com incontáveis perdas, e um empenho de subversão de marcas realistas que rápida e vigorosamente se agarra ao melodrama.

A protagonista é Delia (Paola Cortellesi), moradora de um cortiço pobre, mãe de três filhos (uma moça e dois meninos), nora de um idoso frustrado/demandante, além de esposa de um homem agressivo que constantemente impõe o seu domínio por meio da força. A realizadora estreante faz questão de romper com o verismo mais cru da matriz neorrealista que reverencia ao montar cenários e personagens arquetípicos – não mergulhando na psicologia humana, afinal de contas a prioridade é o discurso político atrelado às tensões de gênero. A família de Delia mora numa casa cujas janelas estão no nível do piso do cortiço, ou seja, quando alguém escancara as finestras dá de cara com os pés dos vizinhos transitando pelo local. A fauna desse espaço é também construída (e mantida) com leves toques de simbolismo, vide as comadres que ficam fuxicando o dia inteiro sentadas com vista privilegiada às portas dos demais moradores. Ainda sobre os personagens, eles desempenham papeis-modelo: a mulher frustrada, o homem agressivo, a garota desesperada para se casar e ter autonomia, os guris inquietos sempre se provocando, a amiga compreensiva da feira, o amor perdido, os capitalistas esnobes, etc. O painel humano e social contém, em si, apontamentos críticos, como donos de um café acusados pelos menos favorecidos de terem enriquecido durante a guerra por falta de escrúpulos e moral.

Delia é uma figura herdeira de outras mulheres do cinema italiano que incorporaram sujeições femininas numa sociedade paradoxalmente notória por matronas expansivas e mandonas – as mandachuvas da intimidade, enquanto homens continuam dando as cartas no âmbito público. O eco mais evidente é o da personagem de Sophia Loren em Um Dia Muito Especial (1977), obra-prima de Ettore Scola, a ela semelhante por ser uma mãe solitária num mundo politicamente conturbado. Mas, sem o vizinho vivido por Marcello Mastroianni na contracena para lhe dar atenção, a protagonista de Ainda Temos o Amanhã é restrita à própria submissão, nem tendo voz ativa em seu lar, tratada muitas vezes como empregada e objeto para descarregar a ira do marido que se desculpa utilizando a guerra como pretexto. E, demonstrando uma ousadia incomum para alguém estreando na direção, Paola Cortellesi dobra a sua aposta nesse verismo figurado ao incorporar o musical ao tecido narrativo. Numa trama que representa a História com foco na emancipação feminina, música e dança ganham funções incomuns. Na primeira dessas cenas, Cortellesi representa a agressão do marido de Delia recorrendo a um bailado ao mesmo tempo gracioso e violento. Um novo paradoxo, portanto. Sim, pois geralmente no cinema musical a dança é comunhão, beleza e até possibilidade de entendimento entre pessoas que de outra maneira se desentendem – como na cena antológica de A Roda da Fortuna (1953) no Central Park, em Nova Iorque, quando Fred Astaire e Cyd Charisse finalmente se conectam ao dançar. Então, Cortellesi subverte essa convenção ao encenar a brutalidade por meio do musical.

Selecionado à edição 2024 da 8 ½ Festa do Cinema Italiano, Ainda Temos o Amanhã foi um sucesso de bilheteria na Itália e também destaque no prêmio David di Donatello (o Oscar italiano). Também pudera. O melodrama corajoso de Paola Cortellesi é cinematograficamente interessante, sobretudo por conta da estimulante parceria entre realismo e performance, além da habilidade para construir um melodrama de tintas clássicas que contém carga social. É forte e indicativa a história de Delia, seu sacrifício em diversos empregos para ajudar no sustento da casa e separar dinheiro a fim de comprar um vestido de noiva melhor à filha. E ela ainda apresenta uma disposição por tomar medidas extremas que contestam a sua passividade numa conjuntura de silenciamento e subjugação. Forte, porque evoca o peso histórico do machismo que precisa ser arruinado em busca de sociedades melhores. Indicativa, pois representa a luta feminina que perdura na atualidade, a despeito das diversas conquistas nos últimos 80 anos. A sororidade está em vários instantes, principalmente naqueles em que a cumplicidade vira uma rede de salvação. Mesmo perdendo um pouco de impacto emocional pela repetição de situações e a falta de variação de determinados assuntos, o filme é uma ótima estreia dessa cineasta talentosa, vide a sequência final em que nossas expectativas são habilmente manipuladas. A diretora nos faz acreditar em algo, mas encerra essa jornada ainda melhor do que a encomenda.

Filme visto durante a 11ª 8 ½ Festa do Cinema Italiano, em junho de 2024

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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